Pela primeira vez escrevo a crônica à luz do luar. Foi preciso reduzir ao mínimo a luminosidade do monitor. Assim mesmo, só dá pra sentir, de verdade, essa luz misteriosa do Sol, que a Lua reflete, apagando totalmente o pequeno monstro e seu tubo de raios catódicos. No outro quarto, também os feios barulhos das entranhas dessa máquina mal se podem escutar. Apago de vez esse tevezinha de computador.
No chão, os desenhos feitos pela luz tênue - não é ainda lua cheia - sugerem uma crônica virtual, mesmo, sem o recurso desses precários e arcaicos sinais enfileirados, evolução de gestos sumérios , egípcios, sei lá, só para significarem sons, que significam palavras, que simbolizam pensamentos e tudo isso está tão longe ainda do que se sente e é possível, apenas sentir.
Ah, tanta tecnologia, tantos progressos nas comunicações, doutores com diploma e peagadê na ciência e saber da arte de comunicar! Será que o homem consegue, de fato, se comunicar melhor com tudo isso? Em cada esquina, em cada carro, mesa de bar, alguém com um telefone minúsculo espremido contra a orelha. Pelas avenidas os contínuos, que viraram office-boys e depois, boys - a língua, como quase tudo, mostra os subterrâneos da alma coletiva: importar palavras novas, frutos de novas invenções e que , por isso não existem, vá lá, mas substituir outras, de uso corriqueiro pela tradução para a língua alheia é sintoma de subjugação e, até admiração pelo colonizador - mas dizia que cada contínuo circula pelas avenidas com um transmissor de rádio preso ao cinto e muitos que não são contínuos, também. É bom lembrar que a cada dez passos, esbarra-se em um, ou vários orelhões, nesse aglomerado gigantesco de pessoas...
Apesar dos comunicadores, apesar dos marqueteiros, apesar chamados formadores de opinião, apesar do indiscutível a fantástico progresso científico e tecnológico com uma infinidade de satélites e outros artefatos que, nós, simples mortais, nem imaginamos, apesar de tudo isso ou, justamente por causa disso, a comunicação do ser humano com outro ser humano, com a natureza, com a beleza da luz tênue refletida pelo satélite maior ou de um pôr-do-sol e não parece ter melhorado. A rigor, pode mesmo ter se tornado mais difícil. Sobretudo, a mais difícil das comunicações: a de cada indivíduo com o mundo desconhecido que carrega consigo. O velho adágio que, contam, já encimava a entrada do oráculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo.
A verdade é que gostamos e afagamos a imagem que fazemos de nós próprios. Quem não se acha um sujeito legal? Quem se julga responsável pelas mazelas do mundo em que vive? Quem procura, séria e arduamente, em si, aquilo que critica nos outros e na sociedade? Quem chegou à perspicácia necessária para desmascarar os sutis artifícios, que nossa própria mente elabora para se isolar numa imagem idealizada, de um ser justo, imparcial, bondoso, etc.?
Ah, quando por obra de deuses que desconhecemos, a vida nos propicia um pequeno instante de silêncio, talvez daquela paz que todos proclamam desejar, quando nesse estado particular podemos nos comunicar efetivamente com alguma pessoa ou alguma coisa, compreendemos, ainda que por um instante, o que é compreender, o que é comunicar ou comunicar-se, o quanto nos debatemos contra as grades da gaiola que, dia após dia, continuamos a construir, remendar e reforçar, ao redor de nós!
Às vezes, a marca de alguns desses momentos tão especiais, quando muito intensos e compartilhados com outra pessoa, nos deixa alterados. Às vezes, essas alterações são chamadas de paixão.
Publicada em 27 de março de 1999
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