O usurpador
25/03/16
— Usurpador! - o grito amanheceu comigo, sem quê nem pra quê, sobra de algum sonho talvez, mas logo engendrou-se em cena, gritado por uma mulher à beira do cais, em direção ao navio a se afastar. No mesmo instante o comandate da nave aciona o apito ensurdecedor e grave, apito a ser percebido como vibração por todo corpo e quase doer no ouvido. Com a coincidência, o grito já inútil pela desproporção de tamanhos se perdeu como se silêncio fosse no bojo da voz poderosa e solene da embarcação, ainda puxada por rebocadores rumo à boca da baía, em direção à pedra nua e bela que lembrou ao portugueses um pão de açúcar. Depois, o cargueiro gigantesco, livre de todas as amarras, rumou com os próprios motores para linha incerta e inatingível onde o azul do mar toca o azul do céu. Perdi-me, então, com a inacessibilidade do horizonte e as brumas do despertar se dissolveram gradativamente, apagando para sempre o incógnito usurpador embarcado e o navio com o tombadilho cheio de contêineres empilhados, a diminuir-se na imensidão do oceano e deixando atrás a figura minúscula da mulher na beira do cais. Espantei os últimos vestígios do limbo entre a vigília e o sono e vim anotar isto e alimentar minha perplexidade com o cérebro humano. Uma vez escrito, a constatação: fora do estado nebuloso do lusco-fusco cerebral nenhuma possibilidade de elaborar o embrião de história, identificar na tripulação o usurpador - ou seria ele um clandestino? - e descobrir o motivo do grito despertador. Cogitei sobre a origem da cena matinal: talvez memórias antigas de um adolescente frequentador do cais do porto estimulado, agora, por cenas cotidianas de embarcações, principalmente cargueiros, ancorados "na linha do horizonte" ou agigantando-se ao entrar ou sair da baía da Guanabara, indo para ou vindo do cais. |
Tue, 29 Mar 2016 11:44:55 -0700 (PDT) li hj sem assinatura Seus dois irmãos frequentavam (o colégio era vizinho). Sun, 3 Apr 2016 16:30:06 -0300 que lindo, só li hoje e adorei! sem assinatura Precisei reler, não lembrava mais... Que bom que gostou! |
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