- O que você está fazendo? - Nada... falando ao telefone - respondo. Ela sugere: - Então, vai escrever uma crônica. Sorrio, mas o sorriso é mudo ao telefone e ela continua e preenche o silêncio: - Eta nós! Síndrome da segunda-feira - todo mundo corre para o trabalho e nós, desocupados, à cata de que fazer!... Atenho-me à sugestão da crônica. - E cadê inspiração? Tudo, agora, me sabe corriqueiro, banal, déjà vu e, pior, sem fluência, começam a emergir pretensas louçanias, como este sabe ou esta própria louçania com cheiro de mofo... Ela parou no sabe e me interrompeu sem ter ouvido o resto, com ênfase. - Como é que é: "me sabe" - Pois é, a expressão me sobrou como herança materna, ela, minha mãe, usava o verbo saber neste sentido antiquado: "ter sabor ou gosto", como confirma o dicionário. A respeito de comida, a respeito de um convite qualquer, minha mãe, volta e meia se saía com esta: "Não, não me sabe bem..." e nós entendíamos como um não me apetece - é isso, herança materna! Mas o aprendiz sucumbe à constatação da onipresença da mentira - é impossível viver sem mentir, como repete sempre o Doutor House, do seriado da televisão. As primeiras quatro frases do diálogo ao telefone aconteceram, fora da ficção. O resto são mentiras escorridas da pena inexistente neste computador, velho, como tudo por aqui e com achaques apropriados a um ancião, e mais: o telefonema existiu, mas há muito tempo, quando o centro da Itália se desmilingüia num terremoto. Agora, quase o mês de abril se desmilingüe em outro feriadão e reparo não segunda-feira, como a história afirma. Então, talvez seja tudo mera invencionice, tudo filho das mentiras com que urdimos e enlaçamos nossas vidas! - Alô? - Tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu Enfim, ocupado! |
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