Era uma vez um menino, igual a milhões de outros, para quem viver era apenas continuar vivo... nada disso, essas cogitações não existem para os meninos. Somos nós, os velhos, que nos entretemos nas lembranças do menino e lhe emprestamos a nossa visão. Os meninos não contam histórias que começam assim: era uma vez um menino, igual a milhões de outros... Os meninos pequenos apenas vivem.
Era uma vez um menino, igual a milhões de outros, à voltas com sua sina, igual a de tantos meninos, de supor que todo mistério está como, de resto, tudo na vida estaria também, guardado e escondido dentro de alguma menina, diante do que, lhe parecia haver uma única tarefa urgente e imperativa: encontrar a guardiã de todos os tesouros! De fato, se alguém supõe, o supomos nós, os velhos, cheio de convicções! Os meninos têm suas certezas, precárias, mas bastantes. Apenas seguem, à espreita da própria sina...
Era uma vez um velho, que já não era menino e começou a escrever como se menino fosse. Tomado talvez por algum deus ou diabo e mais preciso seria se dissesse que quem o possuía era deusa ou diaba, não importa, mas mulher! E o velho que não era tão velho e o menino, nem tão menino assim, escreveram:
Fiquei espiando pelas janelas da cabeça e pela janela debruçada sobre a cidade vazia que me parecia estrangeira e absurda, como tudo e me repetia, com medo de não acreditar, que no meio da blindagem de concreto e vidro, em algum lugar, se escondia você. E firmava os olhos míopes nas casinhas lá embaixo para enxergar mais nítidas as sombras e luzes, pintadas pelo pôr-do-sol nas dunas de um deserto percorrido em sonhos, em cima desse bicho esquisito demais, altivo e esnobe, com duas corcundas absurdas como todo o resto. Foge, cara. Foge que o tempo é pouco e o mar está muito longe, na distância do horizonte. O longe sagrado para a vista se perder. Aqui, tudo se perde por estar perto demais. Tem o supermercado de sonhos alheios do outro lado da rua e na esquina, condução demais para lugar nenhum. Foge! Foge dos signos de possibilidades de tudo quanto é impossível. Restam as exúvias quando as cigarras cessam de cantar. Brinca com elas, pois já mataram o pé de carambola e o jambeiro gigante não existe mais, nem seu tapete magenta para viajar. Cuidado! Os doutos escondem no armário um paletó verde cheio de rendas e babados nas golas e punhos, mas não há confete nem serpentinas. Só a serpente enroscada e a língua ferina que lança perfume, veneno e prazer. E eles repetem que habitam o templo do saber! Foge! Eles são loucos. Foge! O louco é você.
- Ruíram as muralhas de teu Olimpo. Os
deuses, em bandos, se regozijam e cantam e dançam ao redor
do teu Zeus. Não lute mais, pois Eros já espalhou
seu veneno e Dionísio vem vindo com sua marreta. Lembra
o que disse o grande homem: "Neste
dia perfeito, em que tudo amadurece e não só a videira
doura, caiu-me na vida um raio de sol: olhei para trás,
olhei para a frente, jamais vi tantas e tão boas coisas
de uma só vez. Não foi em vão que enterrei
hoje o meu quadragésimo quarto ano, era-me lícito
sepultá-lo - o que nele era Vida está salvo, é
imortal." Chegado o momento, cumpre estar preparado. Memória
é apenas imagem retida, é mentira de vida. Canta,
sorri, dança e te embriaga. Toma a marreta e testa o pedestal
de todos os ídolos. Agora, pois é agora que os deuses
fazem sua bacanal. Chegado o tempo, cada qual cobrará sacrifício
e então o palco do templo da adolescência será
pequeno para os clamores de tanta ilusão e a abóbada
ruirá transformando em poeira a falsidade tanto tempo retida
e os ventos moverão as dunas do que nunca foi. Corta todas
as amarras e cada pássaro encontrará seu céu,
cada barco seu oceano. Crava garras e dentes na esperança
que se desfaz. Retém as areias que querem se dispersar.
Verte a taça que mente na imagem invertida do que não
se pode reter. Agora! - amanhã já é tarde
demais.
Gritaram todos alucinados, quase em uníssono.
O deus Razão percebia, impotente, sua derrota. Ainda há
pouco saberia teorizar com eloqüentes argumentos sobre o
modelo ideal de relação homem-mulher. Vangloriava-se
de sua invulnerabilidade a "essa coisa idiota que chamam
paixão". Tinha como certo seu poder e o controle sobre
outros deuses mais subterrâneos e irracionais. Vaidoso,
repetia para si mesmo, com orgulho e para se enganar, que tudo
corria conforme um modelo ideal. Acreditava estar preparado para
qualquer desfecho. Confiava em sua visão, que supunha clara
e tranqüila. "Besteira querer impor qualquer vontade"
- repetia. Teorizava, pois era razão, que as estrelas ou
outro mistério qualquer, sabiam melhor que ninguém
que rotas e rumos traçar. Mas dizia essas coisas só
para se iludir, pois havia uma rota preferida. Agora, diante da
algazarra incontida de outros deuses, o senhor do racional constatava,
perplexo, sua impotência...
O trecho citado é de Frederich Nietzche, em ECCE HOMO.
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