'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Penélope

24/10/07

Com o pé esquerdo e muito cuidado, Penélope procurou o degrau logo abaixo. Sabia que as escadas são sempre mais perigosas ao descer e os sapatos de cristal, frágeis demais para qualquer escorregão. Assim, degrau por degrau, o charme das extrovertidas unhas azuis e a beleza singela dos sapatinhos faiscantes traziam Penélope mais e sempre escada abaixo através das intermináveis prateleiras da sapataria que lhe pareciam, quiçá por artes feiticeiras, espelhadas, multifacetadas, profusamente iluminadas e deliciosamente irisadas. Poderia comê-las como se fossem jujubas, dizia consigo.

Por fim, entre saltos e bicos, finos e largos, altos e baixos, Penélope se viu ao pé da escada, apaziguada da tormenta que, mais dia menos dia, impõe a toda mulher a fatalidade de descer pelo elevador do poço sem fundo a atender clamor da própria entranha, como se Terra, prenhe de Vida, súbito, rogasse por gerar.

Agora, estatelada, Penélope mia. Sorri ao notar que, na queda, seu precioso par, fiel no ecoar as notas mais altas, os cantos mais finos, não se partira, não era pó, areia da fina a cantar com os ventos e encantar, não. Todavia, seu pé de Cinderela forasteira emergiu nu como interrogação, da montanha de sapatos. Dedos do pé dão tchau?

aquarela do autor [1985]
aquarela do autor [1985]

Ah, mágicos tapetes capazes de transportar aonde os mais sagazes jatos jamais souberam chegar! Em qual desses persas voar? Onde o fio mágico que o teceu? Esfrega com afinco esta lâmpada, cara! Gênios morrem? Que acordes acordariam um gênio adormecido?

Através das dunas, pelas praias e pelos ares a areia mais fina se metamorfoseia e faz-se vidro e se lapida cristal de novo - tinindo!... mas... reflexos incongruentes... um é outro e outro já não é mais e o aqui é acolá e o lá depois! Na ampulheta, fina, implacável escorre também a vida, líquida a se evaporar.

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