A consciência é uma faca de dois gumes, como se costuma dizer ou, se preferirem, o pensamento pode ser uma armadilha. É preciso aprender a lidar com essa capacidade que, mais que qualquer outra coisa, torna nossa espécie ímpar entre os animais. Se tenho consciência que algo pode ser assim, ou que a explicação aceita é tal ou qual, esta informação interfere na observação dos fatos. Talvez as coisas até sejam do jeito que se explicou, mas saber de antemão o "truque da mágica" interfere na observação. Por saber antes como é, não acompanho o desenrolar com o mesmo interesse e atenção. A informação impede o descobrimento. Por isso é preciso lidar com o pensamento e a "sabedoria" acumulada com mais sabedoria ainda.
"Bem aventurados os pobres de espírito..." - assim foram traduzidas palavras supostamente ditas por Jesus. São esses "pobres de espírito" - que eu entendo apenas como pessoas sem a carga de uma montanha de informações - que me surpreendem e alegram com a verdadeira inteligência do ser humano. Elas navegam por um mar desconhecido, como todos nós mas, por não trazerem esse lastro de informações, fluem com muito mais leveza através dos desafios da vida e de nosso profundo desconhecimento de nós mesmos e, volta e meia, nos proporcionam o delicioso espetáculo da percepção. São elas, as pessoas que se costuma chamar de "simples" que, com muito mais freqüência descobrem diante de nossos olhos, o novo - a verdade contida em algo que está acontecendo, que é presente.
O novo guardado nos livros tem muito pouca utilidade para lidar com a vida. Serve quando se trata de uma ciência ou tecnologia. Quando uma pessoa quer se entender consigo, com seus pensamentos, com sua consciência e tudo mais que faz um ser humano e não sei nem nomear, aí, o saber das bibliotecas pode atrapalhar muito mais do que ajudar. As palavras de Jesus, de Buda, de Freud ou Jung, viram oração - repetidas mecanicamente, mortas. Os "pobres de espírito", às vezes, são capazes de nos surpreender com palavras cheias de vida.
Minha grande amiga sofreu muito por ser tratada como "pobre de espírito". Muitos, inclusive, confundem acumulo de informação com inteligência, sem atentar para a definição mais banal, do dicionário, de que inteligência é a "faculdade de aprender, apreender ou compreender". (A rigor, nunca achei uma definição de inteligência plenamente satisfatória. A inteligência me parece algo muito complexo, com múltiplas facetas - muitas inteligências.) Por circunstâncias da vida, o lastro - esse peso morto necessário numa embarcação - o "lastro de cultura" de minha grande amiga era menor, do que o das pessoas com quem convivia. Por isso, foi vítima de zombarias e chacotas. Assim, e por estar mais leve talvez, também sempre foi mais capaz da alegria. Pura, espontânea, como a dos outros animais, não humanos. Tudo isso fez dela, durante algum tempo, o bobo da corte ou, a boba da patota.
No entanto, ela sofria ou , como o João Valentão do Caymmi, tinha "seus momentos na vida", momentos em que invejava os grandes baús cheios de sabedoria - às vezes meros truques de ilusionismo - com que, aos olhas dela, as outras pessoas desfilavam. (Os intelectuais têm muito orgulho de seu saber!)
Pois bem, esta minha amiga querida, foi a pessoa que conheci mais capaz de aprender, de apreender e, em muitos momentos, de compreender. Como um farol, ela iluminou muita coisa aos meus olhos. Inclusive, o significado da frase de Jesus, que traduziram com os eufemismos de "pobres de espírito" e "reino dos céus" e, já na infância, colocaram no meu baú. É preciso muita simplicidade para a inteligência. Obrigado, amiga querida.
Publicada Segunda-feira, 31 de Maio de 1999
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