O poder tem estranhos poderes! A vítima mais notória desses estranhos poderes que tem o poder é, obviamente, a que abocanha a fatia mais suculenta de poder formal - o imperador, a rainha, o tirano ou, o presidente, quando o reino, império ou tribo se diz república.
Uma notícia das primeiras páginas do último domingo, conta que o senhor presidente, a passeio por terras lusitanas, afirmou achar exagerado o aumento do seis dólares, que se cogita, por aqui, para o salário mínimo. Deve ser mesmo. Afinal, com o acréscimo a remuneração de cada trabalhador - e de cada inútil aposentado, que teima em sobreviver - chegaria a quase três dólares por dia. Um absurdo, um desperdício, um despropósito! Um dólar para ir, outro para voltar e ainda sobraria um, para o alimentar-se. Por que reclamar? A cadeia norte-americana vende um sanduíche por menos que isso e, quem quiser, pode abusar do catch-up e da mostarda. Coca-cola? Bobagem, esse país tem, como já dizia o Caminha, "as águas são muitas, infinitas." Aliás, o escriba português já assinalava na carta tão lida e relida agora, que os nativos "... não comem senão inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos." Três dólares por dia é, definitivamente, quase um esbanjamento.
Calcula-se que os quase noventa dólares compram a calculadíssima e manipulada cesta-básica, para o trabalhador ou sobrevivente impertinente, que além de inútil teima em não morrer e, após a compra, ainda sobraria um troco, capaz de pagar uma "geral" no Maracanã em jogo de Olaria e Bangú, ou outros luxos semelhantes. Reclamar do quê? O presidente defende um aumento menor. Com estes seis dólares, argumenta o doutor peagadê em sociologias e politicagens, a previdente Previdência Social - atentem aos nomes! - teria um prejuízo de 600 milhões de dólares! Ora, isso seria insuportável! Inaceitável! Capaz de acabar com o país...
Nos mesmos jornais, nos mesmos canais, por toda parte se pode ver o contentamento indisfarçável do último banqueiro salvo pelas mesmas pessoas que se opõem ao aumento absurdo do salário minúsculo. (Por que não propor mais uma reforma, para criar, além do mínimo, o salário mini, o micro e o infinitesimal?) Vê-se também e, pior, sente-se o odor, que um dia os excrementos vêm à tona, tal como aconteceu agora, com o "emissário" que se rompeu e impede o banho nas praias cariocas...
Às mesmas pessoas que se opõem ao exagerado aumento de seis dólares, pareceu muito justo doar uns quinze bilhões de dólares - vou dizer de outro jeito porque é muito difícil visualizar: quinze mil milhões de dólares! - pareceu muito justo doar essa bagatela a uns quatro ou cinco banqueiros, talvez alguns a mais... dólares e banqueiros. Tanto faz. São apenas 25 vezes os 600 milhões que fazem o presidente perder o sono...
Sem dúvida, o poder tem estranhos poderes. Mas quando menos se espera o subterrâneo e submarino emissário, que deveria despejar longe e em mar aberto, toda porcaria que produzimos, se rompe e a "princesinha do mar" começa a feder. De repente, olhamos em volta e nos vemos cercados de podridão por todos os lados...
Publicada em 23 de abril de 1999
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