crônica do dia

Prato cheio

28/06/06

Eis um prato para psicólogos e simpatizantes, para estender o leque, como fazem lésbicas e gays: tenho uma paixão secreta por fotos em adiantado estado de deterioração, talvez por qualquer imagem em que o tempo e os maus tratos tenham interferido e completado com um toque, sempre de classe, do Acaso, a obra.

Coisa de velho? Vício de eremita? Veja-se a capa de 'O que é fotografia', escolhida em 1982, entre muitas, muitíssimas opções. Elegeu-se uma imagem antiga e comprometida pela ação do tempo, como a que aqui se mostra. Nos dois casos, os sais (a maior parte, de prata) que formam a imagem reagiram com componentes da atmosfera e sobras indesejáveis do processamento e mudaram cor, brilho, textura ou, mesmo, corroeram imagem e papel. Acrescente-se a ação de umidade, insetos, fungos e outros microorganismos. Dir-se-ia: o reverso da restauração.

 

autor: clode.kubrusly@gmail.com


foto perdida e achada em chão de cimento muito úmido

 

Não me importam as explicações possíveis, constato apenas que recolho e guardo, com carinho, cada imagem semidestruída com que me deparo e prefiro a verdade do poeta, impossível de contestar e, aqui, deliciosamente posta nos versos de 'Gesso', por Manuel Bandeira:

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as linhas muito puras -
Mal sugeria imagem de vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a,
manchou-a de pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
impregnaram-na da minha humanidade
irônica e tísico.
Um dia mão estúpida
inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles
tristes fragmentos, recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda
mais o sujo mordente da pátina...
Hoje esse gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Boa sorte aos intérpretes da psique!

 

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