O Pregador




21/08/97


Por que devo acreditar no pregador do rádio? Calma, dona Sabrina, calma. Sei muito bem, que lugar de pregador é no varal, falo aqui de outros pregadores, que não se vendem em supermercados, pelo menos explicitamente, pois pelo que sei, vendem-se sempre, em qualquer lugar, só depende de acertar o preço. São padres, pastores, bispos, irmãs, abades, abadessas, pastoras, talvez haja até ovelhas ou cabras, que cabrito bom, não berra. É a total promiscuidade dos títulos canônicos. Outro dia topei com um amigo que fez serviço de pintor lá casa, há uns tempos. Perguntei: e aí cara como vai a vida, sempre pendurado na broxa? Ele então me explicou que não, tinha deixado essa vida de perdição. Agora era pastor da Igreja Eclesiástica Pentatêutica Dominical dos Anjos do Apocalipse. Diante de minha perplexidade, explicou que era uma novíssima igreja, a duas quadras de sua casa, no Jaçanã, pois fora ele próprio o fundador e era, agora, o pastor, o contador e até o papa da tal igreja! Contou mais: disse ser muito melhor as novas investiduras, que as artes e ofícios da pintura, pois além de não sujar, rendiam muito mais. O Ivonildo, chamava-se assim o ex-pintor, gostou do assunto e já queria abrir uma gorda pasta marrom, que trazia, para justificar com não sei que profecia bíblica aquela mudança - um verdadeiro milagre! repetia quase babando - o tal milagre em sua vida. Talvez fosse por tudo isso que, antigamente, padre, pra falar com Deus, usava o latim...

Dei toda essa volta porque que quase não consigo acreditar, que alguém leva a sério quando um desse pregadores diz, na maior cara de pau: "o que Jesus queria dizer..." ou então: "... Jesus açoitou os vendilhões, mas sem ódio, só com amor..." e muitas, muitas outras explicações que até mesmo o chefe dos psicoterapeutas de Jesus não teria coragem de afirmar. Disse que estava ouvindo rádio, e lá pelas tantas, um desses intérpretes de fatos acontecidos há dois mil anos, contou esta passagem: Jesus falava para a multidão, quando vieram avisá-lo da chegada de sua mãe e seus irmãos. Diante da notícia, Jesus falou para o povo: quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? Todo aquele que ama meu Pai, é meu irmão. Vocês são meus irmãos, vocês são minha mãe. Mais ou menos isso. Ora, a grande preocupação do intérprete radiofônico, era deixar claro que Jesus amava sua mãe - e perguntava: Quem não ama sua mãe? Quem não ama sua mãe? Dissipar qualquer possibilidade de Jesus não amar seus irmãos de sangue, etc.

Não sei se imaginam a cena radiofônica, mas tudo isso é falado num tom de voz muito peculiar, que só se usa para essas coisas - poderia chamar-se a voz do pastor! Parêntese. Fiquei sabendo, outro dia, que há cursos para a formação de pastores radialistas... Fecha. Se vocês tem boa memória, hão de ter notado que algumas de nossas figuras de destaque deixaram de falar com a afetação típica, o que torna mais calhorda esse jeito de falar. A cena, porém , não está completa, ao fundo, durante todo trabalho de interpretação dos motivos íntimos de quem morreu há dois milênios, havia música. Sim, um fundo musical, uma trilha sonora, bem diferente de tudo que você está acostumado a ouvir no rádio.

Aí me pergunto, dona Sabrina, as explicações do intérprete não poderiam estar justamente anulando o efeito das palavras de Jesus? E se ele estivesse, mesmo, querendo dizer apenas que qualquer um pode ser mais meu irmão do que aquele que, por coincidência, nasceu da mesma barriga que eu? E se ele estivesse, mesmo, querendo dizer, que embora paridos por uma mulher, precisamos amar indistintamente todos, homens e mulheres, com um amor sem rótulo e cego? Por que devo acreditar no pregador do rádio?

 

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