Por que devo acreditar no pregador do rádio? Calma, dona
Sabrina, calma. Sei muito bem, que lugar de pregador é
no varal, falo aqui de outros pregadores, que não se vendem
em supermercados, pelo menos explicitamente, pois pelo que sei,
vendem-se sempre, em qualquer lugar, só depende de acertar
o preço. São padres, pastores, bispos, irmãs,
abades, abadessas, pastoras, talvez haja até ovelhas ou
cabras, que cabrito bom, não berra. É a total promiscuidade
dos títulos canônicos. Outro dia topei com um amigo
que fez serviço de pintor lá casa, há uns
tempos. Perguntei: e aí cara como vai a vida, sempre pendurado
na broxa? Ele então me explicou que não, tinha deixado
essa vida de perdição. Agora era pastor da Igreja
Eclesiástica Pentatêutica Dominical dos Anjos do
Apocalipse. Diante de minha perplexidade, explicou que era uma
novíssima igreja, a duas quadras de sua casa, no Jaçanã,
pois fora ele próprio o fundador e era, agora, o pastor,
o contador e até o papa da tal igreja! Contou mais: disse
ser muito melhor as novas investiduras, que as artes e ofícios
da pintura, pois além de não sujar, rendiam muito
mais. O Ivonildo, chamava-se assim o ex-pintor, gostou do assunto
e já queria abrir uma gorda pasta marrom, que trazia, para
justificar com não sei que profecia bíblica aquela
mudança - um verdadeiro milagre! repetia quase babando
- o tal milagre em sua vida. Talvez fosse por tudo isso que, antigamente,
padre, pra falar com Deus, usava o latim...
Dei toda essa volta porque que quase não consigo acreditar,
que alguém leva a sério quando um desse pregadores
diz, na maior cara de pau: "o que Jesus queria dizer..."
ou então: "... Jesus açoitou os vendilhões,
mas sem ódio, só com amor..." e muitas, muitas
outras explicações que até mesmo o chefe
dos psicoterapeutas de Jesus não teria coragem de afirmar.
Disse que estava ouvindo rádio, e lá pelas tantas,
um desses intérpretes de fatos acontecidos há dois
mil anos, contou esta passagem: Jesus falava para a multidão,
quando vieram avisá-lo da chegada de sua mãe e seus
irmãos. Diante da notícia, Jesus falou para o povo:
quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?
Todo aquele que ama meu Pai, é meu irmão. Vocês
são meus irmãos, vocês são minha mãe.
Mais ou menos isso. Ora, a grande preocupação do
intérprete radiofônico, era deixar claro que Jesus
amava sua mãe - e perguntava: Quem não ama sua mãe?
Quem não ama sua mãe? Dissipar qualquer possibilidade
de Jesus não amar seus irmãos de sangue, etc.
Não sei se imaginam a cena radiofônica, mas tudo
isso é falado num tom de voz muito peculiar, que só
se usa para essas coisas - poderia chamar-se a voz do pastor!
Parêntese. Fiquei sabendo, outro dia, que há cursos
para a formação de pastores radialistas... Fecha.
Se vocês tem boa memória, hão de ter notado
que algumas de nossas figuras de destaque deixaram de falar com
a afetação típica, o que torna mais calhorda
esse jeito de falar. A cena, porém , não está
completa, ao fundo, durante todo trabalho de interpretação
dos motivos íntimos de quem morreu há dois milênios,
havia música. Sim, um fundo musical, uma trilha sonora,
bem diferente de tudo que você está acostumado a
ouvir no rádio.
Aí me pergunto, dona Sabrina, as explicações do intérprete não poderiam estar justamente anulando o efeito das palavras de Jesus? E se ele estivesse, mesmo, querendo dizer apenas que qualquer um pode ser mais meu irmão do que aquele que, por coincidência, nasceu da mesma barriga que eu? E se ele estivesse, mesmo, querendo dizer, que embora paridos por uma mulher, precisamos amar indistintamente todos, homens e mulheres, com um amor sem rótulo e cego? Por que devo acreditar no pregador do rádio?
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