A menina é linda. De pele morena e um sorriso que ainda consegue transparecer no rosto prematuramente marcado pelo sofrimento. Nos olhos enormes, talvez. De longe, pede um trocado. Aceno com umas moedas, ao mesmo tempo que contemplo seus olhos negros e tristes, mas que escondem ainda o sorriso da criança. Um sorriso inocente, que em breve se apagará. Pergunto, para brincar: eu vou ou você vem? Ela pula como um felino, em suas perninhas finas. Pega os trocados e agradece, mais com os olhos e o rosto do que com as palavras decoradas. Agradece mais uma troca indizível do que os trocados. A menina linda deve ter uns oito anos...

Em duas ou três semanas os jornais e revistas trarão previsões para o ano que vai começar. Oráculos por encomenda, com um olho na bola de cristal e outro no bolso do freguês, tomarão as primeiras páginas e os horários mais caros da tevê. Repetirão as previsões de cada ano, com o mesmo tédio que nos leva dia após dia de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Por certo incluirão alguma grande tragédia, meio indefinida quanto ao tempo e lugar; anunciarão meia dúzia de mortes de figuras conhecidas, vagamente insinuadas; quiçá, uma congestão econômica qualquer e outras ninharias. A mídia publicará com grande destaque o rol de bobagens, fingindo acreditar que alguma coisa vai mesmo acabar e com todo zelo para que não se acabem seus lucros, sempre com um olho no bolso do anunciante e o outro, inevitavelmente no do freguês...

Os poetas por contrato trarão suas encomendas e mostrarão as canções que já estarão nas prateleiras e reprisadas nas tevês. Vesgos de tanto buscar com um olho a musa e o outro, falcatruas de direitos autorais. O "Príncipe" ouvirá seu conselheiro e mentor, traduzindo e traindo Nicolau, não o primo, mas o Machiavel, e distribuirá pão e circo na busca inspiração para seus delírios e, sobretudo e principalmente, continuar "príncipe". As migalhas atiradas serão disputadas pelos pássaros de Hitchcock a dura bicadas. E cada um terá seu farelo na medida de sua malícia e do poder de garras e bicos. Os templos dos mercadores expulsarão os últimos infiéis, adoradores de outros bezerros e o ouro puro resplandecerá em signos importados, como as bugigangas que transbordam das cornucópias e cartolas de mágicos.

A mesa será farta mistura de símbolos e vícios. Correi e bebei, que hoje é lícito se embriagar! - proclamará o anjo do Apocalipse. Muitos irão comer e beber sem fome alguma para saciar. Irão comemorar e já não se sabe mais o quê. Os céus ficarão iluminados com cordões infinitos de minúsculas lâmpadas presos com super bonder na pele das árvores e todos os fogos cheios de artifícios vão se incendiar em ritos a deuses, demônios e sabe-se lá que mais... As flores serão mortas e lançadas ao mar junto com as garrafas vazias e o vômito dos que beberam demais. A ressaca nas praias e nas gentes anunciará, no calendário dos Homens, o estupro consumado de outro ano...

Algumas previsões são fáceis de prever. Todos nós sabemos o que espera a menina linda que pediu um trocado. Como é fácil prever o futuro de milhares de crianças que, como ela, dormem, dia após dia, sob algum viaduto ou outra fresta da cidade construída para o automóvel. Essas previsões não estarão nas primeiras páginas e nem vão servir de entretenimento na televisão. O olho no bolso, dos oráculos, não recomenda esse tipo de previsão. Aos olhos da mídia ela também deve ser deixada para outra ocasião. À menina linda não será permitido se aproximar da mesa. Poderá dividir os restos com os cães... e as milhares de outras crianças que conhecem a fome. Ouvirá a canção encomendada, que estará tocando por toda parte, mas será difícil comprá-la, se quiser. Seria escorraçada, se tentasse entrar nos templos dos mercadores. Afinal, bilhões são gastos com segurança para manter a aparência de que a miséria e a morte nunca irão nos emboscar. Os "seguranças" dos templos fariam o serviço sujo e afugentariam a menina linda dos olhos de jabuticaba. Com isso, poderemos comprar os mimos para "nossas" crianças sem o risco de lembrar as milhares de crianças que, como ela, nem sequer um carinho irão ganhar...

Algumas previsões são fáceis de prever. Mais tempo, menos tempo, alguém metido com drogas e prostituição vai olhar para a menina linda de pele escura e olhos prematuramente entristecidos... Isso, se ela encontrar um cobertor ou algum outro trapo, para sobreviver ao próximo inverno sem neve, mas de muito frio, que ceifará algumas das crianças que, como ela, estão sujas da fuligem dos escapamentos de nossos carros. As neves de algodão de agora são falsas e absurdas como tudo mais. Não ameaçam a menina linda.

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