Sigfrid, do meio do emaranhado de seus pensamentos, que por sinal não podia saber ao certo serem seus, pois há muito desconfiava, serem os pensamentos entidades autônomas ou, pelo menos, coletivas, que cada um sintoniza com mais ou menos nitidez, tal qual receptores de rádio ou tevê - desconfiava apenas, porque era uma percepção vaga, no seio das brumas e meio embaçada... Assim, nesse emaranhado, Sigfrid depois de muito rodopiar e perder-se em dispersões insuspeitadas, às vezes, achava que uma locução, ou mesmo uma frase, podiam resumir tudo, sem a terrível necessidade de decifrar esse "tudo" além daquelas palavras. Não raro, esse resumo surgia como um título, em belas letras, sempre na capa de um livro que jamais existiu e nem poderia jamais existir. Hoje, o título era: "À espera da Virgem", e logo Sigfrid ria do resumo universal principiar com este acento grave e esdrúxulo. Tinha que ser! - ria-se de si - você é tão complicado que só poderia começar com crase...
No fundo, espera-se sempre que alguma coisa aconteça. Tudo continua a mesma merda de sempre, mas uma vozinha insinua: quem sabe?... - e a gente acaricia a mentira... De braços dados com a indolência, espera-se o seio materno, a chuva vespertina do Maná, o presente de Papai Noel, os ovos de um coelhinho, Peter Pan e a Fada Sininho ou que os deuses se lembrem de nós... O mendigo nos estende a mão e questionamos: porque aceita com tanta indolência aquela situação... Livramento! - assim foi traduzida uma idéia de Nietzsche. Um grande livramento... Bom, palavras e idéias são só idéias, palavras, nada mais, como os títulos de cada dia dos livros de Sigfrid, dia nenhum. Porém, apesar de tudo, Sigfrid não pode evitar sorrir. E se ri de si e zomba, nesse sorrir. Engana aos outros com essas pequenas trapaças e, pior, engana-se, a si...
No caso de Sigfrid, bode velho meio burro, tem sempre mulher por trás dessas mentirinhas e, a cada hora é uma diferente. A imagem de uma linda e grande mulher - pelo menos ele a imagina assim - toma conta do herói e acaricia sua alma. O sorriso iluminado da suposta deusa ilumina o rosto de Sigfrid e ele fica deslumbrado com a leveza com que sua amada consegue lidar com as coisas, ninharias do dia a dia, que mais o atrapalham e apavoram. No entanto, Sigfrid permanece imóvel, na crença idiota de que um dia ela surgirá... e ele acende também um cigarro e vê na fumaça mil rostos que se insinuam com olhares que são capazes de o desvendar.
Enquanto espera, Sigfrid prepara o ninho. Jamais alguém vem ou virá se aninhar. É bem possível que uma ou outra até quisessem esse aconchego. Aí, por ironia ou fatalidade, cabe a Sigfrid não querer... O ninho é só para aquela, única, indizível, aquela que nunca virá, e Sigfrid se pergunta, até, se existirá... Aquela que também sonha com um anjo tão real quanto a deusa de seus sonhos, capaz de fazê-la desaparecer sob as asas, como faz a galinha com os pintinhos e de ter respostas guardadas e classificadas, prontas para responder...
Encontro esse trecho antigo com este nome esdrúxulo: Sigfrid. Sigfrid ? Tem quase três anos. Acabava aí, ou melhor, um pouco antes, ou um pouco depois. Melhor, nem acabar acabava, ficava suspenso sem nexo ou fim. Fiz uns retoques no final, simples troca de sinais... Não é uma falsificação. É desnecessário ser falsário de si. Acendo um cigarro, como um Sigfrid que não conheço e, também olho a fumaça em busca de rostos... Estamos sempre deixando sinais, pistas, o nosso cheiro, independente de qualquer vontade ou intenção. Não sei se é isso bom, se é ruim. Assinala uma certa rigidez, de torre ou árvore secular, afeita sempre a mesma paisagem. As aves migratórias buscam e encontram sempre seu verão...
Por que vangloriar-se de ser eternamente uma cópia de si, pior uma cópia de ontem? Por que arrastar essa cópia com tanto esforço para hoje e amanhã? Por que encher-se de empáfia para proclamar: "sempre fui assim", "sempre pensei desse jeito", "é assim que eu sou"? O quanto esse desejo de fincar raízes e erigir catedrais nos torna rígidos e impenetráveis às surpresas que os ventos podem trazer? De tanto temer tempestades e vendavais negamos nossa face às carícias da brisa mais leve. De tanto querer ter tudo solucionado por antecipação, nos tornamos incompetentes para solucionar cada desafio, grande ou pequeno, que nos provoca cada instante. Em troca de uma suposta segurança, vivemos cheios de medos...
Um dia, cumpre ao filhote do pássaro pular
no abismo, sob o risco de morrer sem jamais saber o que é
voar...
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