'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Prisioneiro

20/09/12

Há cerca de vinte anos, cogitei da possibilidade de me ver fora de casa sem a chave capaz de me franquear o acesso à toca, morada, ermida, pilha de tijolos ou como se queira chamar o reduto com nossa cama, pia e fogão. A cogitação levou-me, então, a esconder uma cópia da chave em uma fresta, suposto bom esconderijo.

Ontem, passava de 17 horas quando começou chuvinha fina, longamente anunciada por fortes ventos o dia todo. Tanto bastou para interromper-se o fornecimento de eletricidade, como sói acontecer primavera e verão afora, do lado de cá do fim do mundo, ao sabor de interações de tempestades com a precária rede elétrica aérea.

Resolvi conferir se também a vizinhança ficara sem luz. Saí, bati a porta atrás de mim e instantaneamente compreendi as consequências daquele gesto impensado: estava prisioneiro fora de minha casa ou prisão. Aí, lembrei-me: existia uma providencial cópia da chave, ela também tanto tempo prisioneira em estreita fenda.

Fui em busca da salvação. Chuva pouca e logo anoiteceria. O esconderijo espremido sob telhas estava escuro. Impossível distinguir qualquer coisa. Teria de achar a chave apenas com o tato. O reduto, abandonado a si mesmo por longo tempo, acumulara uma quantidade indescritível de sujeira, imundícies de toda sorte. De início, varri com os dedos o que podia. Depois, peguei um resto de vassoura sem cabo para concluir. Após muito apalpar, soube que não acharia a preciosa chave. Quem sabe um bicho a derrubara ou coisa parecida. Restava-me, então, arrombar a porta.

Não foi fácil, mas com que gosto transpus aqueles umbrais para reconquistar o que sempre fora meu! Levou mais de cinco horas para o restabelecimento da energia. No claro, corri ao esconderijo, agora iluminado, e... lá estava a chave, em outra fenda, um pouco acima daquela que imaginara...

Thu, Sep 20, 2012 6:01 am

É o roteiro de um curta sobre a crença que temos na infalibilidade dos nossos sentidos e da nossa memória. Muito interessante...

Grande abraço

Ebert

E, no entanto, ambos nos enganam tanto...


Thu, Sep 20, 2012 6:01 am

Olá Clode

Ao ler sua crônica lembrei-me de outra: "O homem nú" do Fernando Sabino, cuja personagem não teve a mesma sorte que você. Assim como a do Sabino, sua crônica é ótima! Você me fez ver direitinho a cena. Mas aqui para nós: você não estava nú quando a porta bateu, não é mesmo? Não sei mais se o imaginei assim...rs

Ah, sobre a chuva de ontem - você nem imagina o quanto eu a estava desejando! O chuvisco, melhor dizendo, veio bem a calhar, pois não aguentava mais aquele calor e o tempo seco. Só mesmo ficando sem roupa.

Beijos da sempre aluna,

Vera

Não, por acaso, pois nos dias muito quentes costumo usar apenas 'havaianas', já que o chão por aqui tem muitos espinhos... A imaginação é livre, como o pensar do Millôr: basta imaginar...

Quanto à chuva, também todas as plantas clamavam de sede aqui, mas eu gosto do clima quente e seco. Quem sabe, por deformação ancestral de antepassados beduínos...

No final, tive muita sorte - poderia estar nu e fazer frio...


September 20, 2012 2:55:53 PM GMT-03:00

Reconquistar o que sempre fora meu...
Adorei! bj

      sem assinatura

Pois é estava impedido pelas circunstâncias de pegar minha lanterna, em meu quarto, para achar minha chave!


September 20, 2012 4:36:17 PM GMT-03:00

ótimo! adorei! como vc escreve bem! transforma um fato corriqueiro num EVENTO CURIOSO!!!!!!

      sem assinatura

Merci. Porém, incapaz de inventar uma história qualquer...


Sun, Sep 23, 2012 11:25 pm

Clode
Se pudesse não teria fechaduras em minha casa.
Sempre tenho problemas com elas... Parece uma sina.
Nunca funcionam direito, as chaves quebram, emperram, não consigo entender o simbolismo de tudo isto.
A sorte é que agora temos um seguro que está incluído ajuda para estes tipos de problemas. O chaveiro vem nos socorrer e com isto fico mais tranquila.
Beijos
maria helena serrano

O medo leva a essa 'febre' de segurança, as muralhas e pontes levadiças da modernidade, cheia de alarmes com tantas vozes e câmeras espiãs e tudo mais e, todavia, com cada vez mais violência...


Mon, Sep 24, 2012 1:29 pm

como sempre descrevendo as miudezas do cotidiano de forma magistral

      sem assinatura

Não tenho acesso ao transcendental para o tentar descrever.


Mon, Oct 01, 2012 9:16 pm

mesmo sem querer, deixamos pegadas, né?

 bjo

ps - e faça mais uma cópia.

      sem assinatura

Abandonei aqueles esconderijos. A chave recuperada após tantos anos, esconde-se, agora e outro lugar.

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