Há cerca de vinte anos, cogitei da possibilidade de me ver fora de casa sem a chave capaz de me franquear o acesso à toca, morada, ermida, pilha de tijolos ou como se queira chamar o reduto com nossa cama, pia e fogão. A cogitação levou-me, então, a esconder uma cópia da chave em uma fresta, suposto bom esconderijo. Ontem, passava de 17 horas quando começou chuvinha fina, longamente anunciada por fortes ventos o dia todo. Tanto bastou para interromper-se o fornecimento de eletricidade, como sói acontecer primavera e verão afora, do lado de cá do fim do mundo, ao sabor de interações de tempestades com a precária rede elétrica aérea. Resolvi conferir se também a vizinhança ficara sem luz. Saí, bati a porta atrás de mim e instantaneamente compreendi as consequências daquele gesto impensado: estava prisioneiro fora de minha casa ou prisão. Aí, lembrei-me: existia uma providencial cópia da chave, ela também tanto tempo prisioneira em estreita fenda. Fui em busca da salvação. Chuva pouca e logo anoiteceria. O esconderijo espremido sob telhas estava escuro. Impossível distinguir qualquer coisa. Teria de achar a chave apenas com o tato. O reduto, abandonado a si mesmo por longo tempo, acumulara uma quantidade indescritível de sujeira, imundícies de toda sorte. De início, varri com os dedos o que podia. Depois, peguei um resto de vassoura sem cabo para concluir. Após muito apalpar, soube que não acharia a preciosa chave. Quem sabe um bicho a derrubara ou coisa parecida. Restava-me, então, arrombar a porta. Não foi fácil, mas com que gosto transpus aqueles umbrais para reconquistar o que sempre fora meu! Levou mais de cinco horas para o restabelecimento da energia. No claro, corri ao esconderijo, agora iluminado, e... lá estava a chave, em outra fenda, um pouco acima daquela que imaginara... |
Thu, Sep 20, 2012 6:01 am É o roteiro de um curta sobre a crença que temos na infalibilidade dos nossos sentidos e da nossa memória. Muito interessante... E, no entanto, ambos nos enganam tanto... Thu, Sep 20, 2012 6:01 am Olá Clode Não, por acaso, pois nos dias muito quentes costumo usar apenas 'havaianas', já que o chão por aqui tem muitos espinhos... A imaginação é livre, como o pensar do Millôr: basta imaginar... September 20, 2012 2:55:53 PM GMT-03:00 Reconquistar o que sempre fora meu... sem assinatura Pois é estava impedido pelas circunstâncias de pegar minha lanterna, em meu quarto, para achar minha chave! September 20, 2012 4:36:17 PM GMT-03:00 ótimo! adorei! como vc escreve bem! transforma um fato corriqueiro num EVENTO CURIOSO!!!!!! sem assinatura Merci. Porém, incapaz de inventar uma história qualquer... Sun, Sep 23, 2012 11:25 pm Clode O medo leva a essa 'febre' de segurança, as muralhas e pontes levadiças da modernidade, cheia de alarmes com tantas vozes e câmeras espiãs e tudo mais e, todavia, com cada vez mais violência... Mon, Sep 24, 2012 1:29 pm como sempre descrevendo as miudezas do cotidiano de forma magistral sem assinatura Não tenho acesso ao transcendental para o tentar descrever. Mon, Oct 01, 2012 9:16 pm mesmo sem querer, deixamos pegadas, né? sem assinatura Abandonei aqueles esconderijos. A chave recuperada após tantos anos, esconde-se, agora e outro lugar. |
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