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Rótulos06/09/02A prateleira da despensa parecia calculada para expor víveres a meus olhos de menino. Verdade de vida curta, é claro, mas foi lá que descobri o infinito, num rótulo de fermento em pó. Nele, o artista reproduzia a lata de fermento em um medalhão oval. Pronto, a mágica estava feita! A lata desenhada no rótulo, embora pequena demais para mostrar qualquer coisa, teria um rótulo onde estaria desenhada outra lata de fermento, muitíssimo menor e assim por diante, cada lata já grávida da geração seguinte, numa fascinante série sem fim de latas de fermento. Sem fim, pelo menos na idéia, sem barreiras de tamanhos ou considerações sobre dimensões de moléculas, átomos e coisas assim, onde seria possível reproduzir a lata para sempre, cada vez menor, sem limite nem as limitações de folhas-de-flandres, papéis, tintas, e fermentos.
Sábado, Cecília parou o carro para cumprimentar e logo veio o convite para o almoço em casa de uma amiga. Cecília, bióloga. Ah, o péssimo hábito de pôr rótulos nas pessoas! Mas vivemos assim, com nossas prateleiras ou bancos de dados, a carregar de hoje para amanhã o peso de ontem, repletos de etiquetas, rótulos, preconceitos. Desta vez, todavia, o rótulo de bióloga trouxe à baila afídeos, pulgões de plantas, com destaque para suas características reprodutivas espetaculares. Na maior parte do ano, são insetos vivíparos e partenogenéticos, quer dizer, há apenas fêmeas capazes de parir filhos vivos, a partir de ovos não fecundados. Machos, para quê? De tempos em tempos, surge uma geração com machos, as fêmeas passam a pôr ovos e a espécie aproveita a troca de genes. É na fase assexuada, todavia, que acontece o mais espantoso: a velocidade de procriação é tão intensa que uma fêmea pode estar grávida de outra, que já traz embriões em seu útero! Grávida das netas! Quase como na série infinita das latinhas de fermento... |
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