Crônica do dia

Como impedir um avô de sair por aí como o Guido (Marcello Mastoianni), personagem de Fellini em Oito e Meio quando, ao receber um presente de seu produtor, o segura pela pulseira - o presente é um relógio de pulso - e cantarola pelo saguão do hotel: "orologino, orologino, orologino - prego signori osservate l'orologino!" e, enquanto caminha, o exibe à direita e à esquerda.

l'orologino [captura de tela]

Olho em meus pés o tênis famoso, preto, e dá ganas de sair a esmo como pregoeiro de imitação: "sapatinho, sapatinho, sapatinho novinho - por favor, senhoras, senhores observem bem o lindo sapato novo que meu neto me deu!" Mas sair em busca de público é negação do eremita e, então, deito palavras inúteis nesta folha virtual com cento e tantas teclas, fora uma que quebrou.

Todavia, não é mais novinho o renomado tênis, já não é mais virginal pois, mal os calcei pela primeira vez, adiantou-se meu neto em seus quinze anos, e disse: "peraí!" Veio então e, com a sola do próprio tênis, da mesma marca, esfregou os bicos brancos, brancos demais, imaculados como noiva antiga e sujou a biqueira, tirou-lhe a perfeição. Feito isto, concluiu: "pronto, agora já pode sair."

Poderia, não fosse lama e mil folhas velhas, caídas, empapadas a grudar nos pés ou no que quer que os calce. Da primeira vez Jeová, o velho Padre Eterno, foi explícito ao expor os motivos do dilúvio: "dentro de sete dias farei chover sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei da superfície da terra todos os seres que eu fiz." Agora, abriu sem porquê as comportas dos céus e encharca o que fez e o mais que permitiu ao Homem fazer.

A umidade me amolece a alma, no mal sentido, é óbvio, e me perco como náufrago na enxurrada de palavras. Já baço o olhar pelo acúmulo de anos, turva-se, agora, a inspiração...

A cena mencionada no primeiro parágrafo se dá aos 28 minutos de exibição, aproximadamente.