'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Sobejos

16/04/08

Eis o flagrante: me pego em fuga palavras afora! A cabeça é capaz dos sutis ardis e o escrever, outrora via de luz, meio de esclarecer, se faz rota viciada, caminho batido para interromper e banalizar o que nela, cabeça, brotava, emergia, vindo não sei bem de onde. O escrever se torna eclusa do turbilhão de pensamentos a aflorar como sonhos impossíveis de evitar e deste vertedouro brotam em abundância estas croniquinhas como abortos, sobras de elaborações - elaborações? - interrompidas.

Agora, escrevo este segundo parágrafo - à mão, antes de o datilografar no computador, máquina de escrever virtual cheia de virtudes e defeitos - o escrevo sem óculos. A necessidade desta muleta a cavalgar meu nariz me atormenta e atormentou desde a primeira vez, há mais de trinta anos, quando fui declarado míope e astigmático, incapaz de enfrentar incólume os faróis de outros carros e, sobre a protuberância nasal que me coube, pousou um par de lentes. (Depois, vou comparar as letras...)

Então, de repente, cessa a enxurrada, como se no nordeste de outrora sangrasse apenas um açude de águas rasas. O fruto que resta é um pedaço inócuo e inútil, embrião indefinido apto a gerar o belo e o monstro, fruto suculento ou semente estéril e venenosa. Por fim pingam estas pretensas crônicas dessa mistura, do caos e do caldo dessa liquidificação.

Ah, como é fácil completar os cerca de mil e oitocentos toques estipulados para cada crônica! Como é fácil brincar com palavras, e encadeá-las ao sabor da ocasião, sem nenhuma história para contar, sem ter algo a dizer. De tudo isso resultam brancos a sublinhar a esporadicidade destas crônicas que nem o são.

Comparo a caligrafia: sem óculos resulta em linhas mais espaçadas e quase nada mais difere! A mão sabe melhor que os olhos entender-se com a caneta esferográfica.

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