Num espetáculo digno dos melhores cinemas, a tempestade se anuncia, desaba, inunda, derruba, destelha, arrasa e passa. O mesmo show de iluminação que a anunciou se repete, sem ventos trovoadas e relâmpagos, para marcar seu fim e trazer uma luz mais oblíqua, de tarde espichada noite à dentro. Este verão, mais que os últimos, tem sido marcado por estas de chuvas de verão. Nas grandes metrópoles cobrimos cada centímetro de chão com cimento ou asfalto. Não sobe mais o delicioso cheiro de terra molhada e a água já não pode descer para o subsolo, como seria natural...
As pessoas que estão nas ruas sabem que a tempestade vem, mas sabem também que são chuvas rápidas e localizadas e que, às vezes, a chuva vai cair em outra freguesia e para elas sobram somente respingos, ou nem isso. Quase sempre, continuam na correria costumeira até os primeiros pingos, quiçá as primeiras pedras. Correm, então, à marquise mais próxima, à porta da loja ou ao botequim e, abrigados, viram espectadores do imprevisível.
Foi numa dessas fugas de chuva de verão que Cecília foi parar na missa. Ir à missa não deve se agradável nem para devotos, pois a poderosa igreja de Roma teve o cuidado de marcar dia certo e obrigatório para tanto, além de estabelecer sanções para os faltosos. Para Cecília seria menos ainda, pois abandonar a religião da mãe tinha sido um dos primeiros ensaios de vôo livre de sua adolescência.
Como quase todos por aqui, Cecília nasceu católica e cresceu sob o peso de códigos que os homens fizeram para chamar de leis de Deus. A ameaça terrível, prevista em tais leis, não era de uma conseqüência qualquer na vida da pessoa, mas de uma vingança posterior e definitiva, sem nenhuma possibilidade de aprendizado e evolução: o inferno! Satanás sorri, apenas sorri. Pior: muita coisa que parecia a Cecília, ou a qualquer um, tão agradável e natural era assinalada como "pecado mortal". Assim: mortal para depois da morte, mortal para a vida eterna, por antecipação!
As primeiras bátegas chegaram ainda sob o spotlight do sol e se destacaram no fundo escuro. Cecília correu para o abrigo mais à mão e se viu, junto com uma pequena multidão, invadindo o átrio de uma igreja. Escureceu de vez, como se a noite estivesse próxima. A água veio farta, com granizo como confete. Mais gente acorria ao abrigo. Sufocada pela crescente multidão, Cecília resolveu entrar na nave, enorme e com poucos "fiéis". Por um instante pensou ter entrado na máquina do tempo do Doutor Papanatas... A nave estava iluminada e, mesmo assim, havia velas acesas no altar. No espaço que ia daí até a área destinada ao público, vários monges - Cecília reconheceu pelo hábito, com o capuz caído às costas e duas folhas de pano reto e solto, na frente e atrás - vários monges, dizia, estavam sentados, de um lado e de outro e respondiam à reza com um cantochão. O show era inusitado e agradável, pelo menos para ela. Caminhou em direção ao altar, e sentou-se na ponta de um dos bancos duros de madeira escura.
Há muitos, muitíssimos anos, Cecília não entrava em nenhuma igreja. Podia ver tudo ali com olhos novos. Mesmo assim, as imagens e lembranças da Cecília menina a tomavam de assalto. Coincidência ou acaso, a igreja de sua infância também fora um mosteiro beneditino. Era outra a cidade, o mundo era outro também, mas os monges e as rezas pareciam ter permanecido os mesmos... Nesse momento Cecília notou que, ali perto, a poucos metros de onde se sentara, no prolongamento lateral da nave, separado por colunas da parte central, havia um confessionário. Notou porque alguém acabava de se confessar e voltava à nave principal, de cabeça baixa, com um véu negro cobrindo os cabelos e o rosto. Mal aquela pessoa deixara o confessionário, outro devoto se ajoelhou no estranho móvel que, certamente, escondia um monge em seu interior. É óbvio, era outra mulher...
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