Uaruma

5/01/98


Esta, se for uma crônica, será a de número 85. O título ficou confortável, mas quem costuma passear por essas bandas sabe que nem sempre é crônica, de fato, o que se publica aqui. Ensaio teria um espectro mais amplo, pois quando não se anuncia o que se está a ensaiar, aproveita-se que tudo ensaia sempre alguma coisa e, com isso, apenas ficaria adiada a tarefa de pôr rótulos e explicar... Foram, no ano numerado como milésimo noningentésimo nonagésimo sétimo, de um tempo que começa a ser contado com o suposto nascimento de um bebê, onde hoje se chama Oriente Médio, 84 ensaios de tipos vários, apelidados no geral de crônicas. Esta seria, pois, se vier a ser, a octogésima quinta.

Por que não imaginar que o município de Uaruma exista mesmo, como indica o velho mapa, às margens do Rio Uaupés, aos quase 69 graus de longitude oeste e quase um grau de latitude norte, vejam bem, norte, no hemisfério das terras e dos ricos! Pode ser que exista e seja mais palpável do que essa teia de imponderáveis códigos digitais em trânsito! Mais difícil - mas já que estamos a imaginar, por que não fazê-lo? - é acreditar que exista também um jornal diário publicado em Uaruma. Ora, se eu publicasse um jornal diário em Uaruma e precisasse a cada dia preencher espaços para fechar uma edição sem cair na monotonia de contar que a florada dessa ou daquela espécie está no final, que uma família de araras já está com seus filhotes emplumados, que alguns colombianos de poucas palavras passaram a noite na cidade e, depois, seguiram viagem para o sul, com destino ignorado ou que a chuva das três e vinte se atrasou um pouco, na véspera, mas nem por isso falhou, etc. Dizia, se precisasse material para fechar o Diário de Uaruma e descobrisse na teia esses ensaios de cada dia, dando sopa e, sempre nesse imaginar sem fronteiras, acharia irresistível transportar o que está pronto, ou quase, para a páginas efêmeras do diário local. Mesmo que fosse uma das muitas uarumas perdidas nessa São Paulo de quase vinte milhões Por que não?

Não estou certo de existir Uaruma como não posso estar certo, tampouco, de que em alguma outra Uaruma qualquer não se reproduzam estas ou outras páginas, que estão aí, na teia imponderável para quem quiser pegar. Direitos autorais? Rio-me desses e quaisquer outros direitos autorais. Sei que serei crucificado por isso também. Mesmo assim, não posso deixar de, pelo menos, sorrir - é engraçado. Leiam os textos ameaçadores dos que tentam defender com unhas dentes e, principalmente, com juízes e advogados, o que consideram direitos seus prenhes de dólares! Você é capaz de nem ao menos sorrir? Diante de todo rol de terríveis ameaças e de... como dizer?... Só sei um jeito vulgar e chulo para nomear com exatidão a outra lista, a que proclama que tudo corre por conta e risco do freguês e que os autores não se responsabilizam por possíveis descarrilamentos de trens ou aparições de objetos voadores, identificáveis ou não, no seu computador, aquele, que Mr. Gates diz ser meu (dele?) e tampouco por eventuais enxaquecas ou distúrbios digestivos de quem fizer uso ou abuso de um tal ou qual shareware, que eles só querem share uma parte, a outra, nem pensar!... Pois é: só sei chamar esses disclaimers com termos que não cabem aqui... Por tudo isso, rio-me desses e outros quaisquer direitos de autor...

Quem leva os direitos autorais dos sapatos, que boa parte da humanidade usa nos pés? Hem? Quem? Por certo algum artesão, ainda que nem se chamasse assim, então, teve a brilhante idéia de pegar algo duro como um pedaço de couro e atar ao pé, com tiras de alguma embira ou coisa parecida, pra facilitar o caminhar... Hoje, quase todos usamos sapatos e tamancos e sandálias e botas que chamam tênis e pouco se caminha... Quem fica com os direitos das cuecas e calcinhas, que são a mesma idéia, de uma roupa mais fácil para lavar de certos fluidos corporais? Algum dia alguém pensou nas vantagens para a vida prática dessas pequenas peças, brancas na origem... Hoje, quase todos usamos cuecas e calcinhas e bem poucos lavam a roupa suja de quase todos... Quem leva os direitos autorais pelo sabão, pelo vidro da janela, pelo garfo, pela faca, pela panela e pela colher? Quem fica com todos os direitos de milhões de "autores" de todas as boas idéias que adotamos e esbanjamos no nosso diário viver? Autores de dez mil, cem mil ou mais anos atrás? Ou o autor de ontem que, por um acaso, criou a piada que todos repetem e acaba saindo até nos jornais?

Se nos víssemos como um só ser, uma humanidade, haveria um único autor e apenas um, para usufruir os frutos do paraíso sem árvore alguma vedada, quer fosse do bem, quer do mal...



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