A raposa acordou, se espreguiçou e sentiu uma câimbra forte na pata de trás. Esperou passar a dor, levantou e percebeu que lhe doíam também todas as juntas de todos os dedos. Compreendeu que acordara outra e, depois de relutar um pouco com a idéia, assumiu seu novo papel de velha raposa, diante do espelho, com a boca cheia de espuma de pasta de dentes. Conferiu, e os dentes confirmaram todas as suspeitas: acordara velha.
Velha, ainda serei capaz de conseguir um franguinho ao molho tinto? - se perguntou -, mas decidiu que cada coisa tem seu tempo. Portanto, era cedo para se preocupar com a hora do pasto. Fome não aceita prorrogação, nem antecipação - concluiu.
Saiu a raposa para o terreiro, reuniu a bicharada e começou: Não é justo que um só galo tenha, além de tantas e tão saborosas galinhas, alimento abundante, este cereal dourado, sombra e água fresca. O galinheiro, senhores, é uma imoralidade, um escárnio aos bichos trabalhadores, que precisam pôr a vida em risco para ter o de comer. O galo é um usurpador! Além do mais, seu passado é nebuloso. Não quero fazer afirmações, mas há histórias de rinhas e cheiro de sangue. Nunca se sabe... nunca se sabe... - e seguiu, com sua facilidade inata de manipular palavras.
A bicharada rugiu, mugiu, baliu, latiu, miou, piou e zurrou. Bateu cabeça, aprovando o discurso da velha raposa. Repetiam - muitos sem conhecer o significado da palavra - usurpador! usurpador! A ninguém pareceu justo que alguns tivessem tudo - teto, poleiros, telas de proteção, porções fartas de rações balanceadas, água corrente e um harém privativo, enquanto o grosso da bicharada precisava conseguir no bico o próprio ninho e obter o simbólico pão com o suor do próprio rosto. O furor crescia; a velha raposa sorria e incitava...
Nisso, vinha se aproximando uma loira leoa, que passara a vida toda invejando as belas jubas dos leões, de andar macio e sorrateiro, como anda toda leoa, com o faro apurado bem na ponta do perfil. Uma leoa meio velha e cansada da vida, que só recebera de presente, de graça, de mão beijada, leõezinhos. O imponente felino tinha fome, pois a ela não davam milho, como ao galo. Ao olhar de longe, a cena lhe pareceu oferecer uma raposa indefesa na salva das cabeças de todos os bichos. Disparou. O galope, dispersou num instante a multidão, pois cada um sabia muito bem que, tanto quanto era preciso caçar o alimento, sempre se era caça também...
Apesar da meia-idade, com o embalo, não foi difícil para a leoa alcançar a velha raposa. Assim, ficou resolvido, para a loira, o problema do almoço e do jantar naquele dia.
Urubus espreitavam em vôo baixo e circular e as hienas mal conseguiam controlar o riso e se acercavam mais e mais. Embora o sol já fosse a meia altura, o galo galgou o poleiro mais alto e cocoricou.
Publicada Terça-feira, 22 de junho de 1999
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