Virgem

30/01/98



Por absoluta falta de saco e total incapacidade para diluir-me e sumir, copio aqui notas rabiscadas num caderninho carioca, fabricado em Petrópolis, em cuja capa uma figura de mulher faz pose de dançar, com um vestido tomara-que-caia, que desce muito justo até os quadris e segue rodado a partir daí até os tornozelos. A mulher tem uma flor em cada sapato (ou seria sapatilha?) e usa pulseiras de argolas no braço esquerdo, além de um frufru quase no ombro do mesmo braço. Faz pose de dança espanhola ou flamenga, talvez. A figura é pobre em detalhes, talvez herança de algum velho clichê mas, mesmo assim, sugere cabelos longuíssimos e muito ondulados, negros, pode-se supor, apesar de se tratar de uma ilustração esquemática, impressa precariamente em duas cores chapadas: verde e salmão. Deixando-se solta a imaginação, em exercícios de devaneio à moda de Buñuel, é fácil ousar mais: os lábios e os olhos estariam muito pintados, por exemplo, e um grande brinco penderia da orelha direita. À caneta, e precariamente, coloquei na mão direita da dançarina, que está jogada um pouco para trás pelo gesto, uma espada e encaixei uma cabeça na outra mão, que se projeta obliquamente para frente e para o lado - a minha! Não há o meu corpo, donde é impossível saber se já fui decepado ou estou prestes a sê-lo. Lá, a partir da sexta folha, está registrado o seguinte:

Flashes de compreensão. Depois, voracidade do querer reter. Seria impossível, perceber uma com a voracidade corrosiva da idéia da outra. Os tempos iriam sempre reprisar essa impossibilidade. Sigfrid vivia anestesiado pelo real. A beleza e feiúra das coisas de verdade o atingiam como veneno de vespa: capaz de paralisar. Um estado de semi-estupidez e estupefação o isolava. Depois, ele se agarrava com todas as ventosas à idéia do que poderia ter sido, do que poderia vir a ser, a toda fantasia e à falsa beleza de imagens assépticas, livres do risco do feio. Ah, teórico das poeiras, até teus gabinetes eram de faz-de-conta!

O ímpeto de fotografar, o ímpeto de escrever, o colecionador de escaravelhos e borboletas mortas! Imaginas possível guardar a vida em gaveteiros forrados de algodão? E havia momentos em que ficava tão claro que só importam os clarões de compreensão... E, de repente, ela volta com mais força ainda, mais linda! Um cego cantando as maravilhas do olhar!

Sigfrid, do meio do emaranhado de pensamentos que, por sinal, não podia saber ao certo serem seus, pois desconfiava, há muito, serem os pensamentos entidades autônomas ou, no mínimo, coletivas, que cada um sintoniza com maior ou menor nitidez - como receptores de rádio... - Desconfiava apenas, porque era uma percepção vaga, no meio de brumas, embaçada. E assim, nesse emaranhado, Sigfrid depois de muito rodopiar e se perder em dispersões insuspeitadas, às vezes achava que uma locução, ou até uma frase, podiam resumir tudo, sem a terrível necessidade de decifrar esse "tudo" além daquelas poucas palavras. Não raro, esse resumo surgia como um título, em belas letras na capa de um livro que jamais existiu. Hoje, o título seria: "À espera da Virgem"! E logo Sigfrid se ria do resumo universal principiar com este acento grave e esdrúxulo. Tinha que ser, zombava de si, você é tão complicado, cara, que só podia mesmo começar com crase...

Tudo, como já disse, se encaixava nessa espera. Não a espera de uma mulher virgem, não! Isto, talvez, tenha sido tudo que Sigfrid possuíra Tudo e apenas. A espera da Virgem era a espera das coisas perfeitas! Imaculadas, sem a mínima mácula. Alvo e sublime como só a um deus é dado produzir! Virgem, seria da próxima vez, ou da outra, ou depois ainda, tanto faz - importante era que fosse absolutamente virgem... e, em troca dessa virgindade impossível, tudo estaria justificado...

E o texto no tal caderninho parava aí. Como falei, dei-me a tarefa de copista, como os monges beneditinos da idade média, por absoluta falta de saco e uma variedade de incapacidades. Para o bicho homem, tudo acaba tendo, também, um valor simbólico. "À espera da virgem" provavelmente estamos todos nós, homens e mulheres e se elas preferirem falar "no virgem", pois o homem perde da mesma forma sua virgindade, embora o substantivo seja feminino, tanto faz. Estamos todos à espera de algo puro, e que além de puro não possa se contaminar. Entretanto, desvirginamos com a razão, com o pensamento e com nosso jeito humano de ser tudo que tocamos! O tal caderninho e a espera das coisas perfeitas e imaculadas lembrou-me outra história. Mas essa fica pra outro dia...



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