29/01/98


desenho de Apennak - sem data, sem assinatura
desenho de Apennak - sem data, sem assinatura



"Vai, sai daqui! porque eu não saio. O que é isto? uma taça que a mão do meu amor aperta! Ah! egoísta! bebeu tudo! não me deixou uma gota para mim! Rumor! então sejamos resoluta. Oh! punhal feliz, tu vais pôr fim ao meu terror. Descansa no meu seio. É assim que eu vou ter contigo."

Assim Domingos Ramos traduziu, para os editores Lello & Irmão, do Porto, as últimas palavras de Julieta, diante do cadáver e do punhal de Romeu, palavras transformadas em atos à medida que eram faladas, pois é teatro! As primeiras vão para Frei Lourenço, que tentava tirá-la de lá. O tradutor explica, em longas notas, que esta versão é tirada da primeira edição, de 1597, apresenta outra variação, modificada mais tarde por Shakespeare:

"Ide, parti vós, daqui! Vós, porque eu não vou. Que é isso? um frasco! a mão do meu fiel amor tem-no bem apertado! É o veneno, bem vejo, que o matou tão cedo! Egoísta! bebeste-o todo, bem podias deixar-me por amizade uma gota para mim! Vou beijar os teus lábios! talvez ainda tenha restos para me matar, sorvendo o cordial dum beijo. Como teus lábios escaldam! Meu Deus! Aí vem gente! Depressa. Oh! abençoado punhal! O meu corpo há de ser a tua bainha. Cria aqui ferrugem dentro de mim, que eu morro"

É extraordinária a idéia aí contida, de que, sem a pessoa amada, é melhor morrer. De tempos em tempos alguém passa da idéia à ação. A vítima não ganha uma peça de Shakespeare por isso, no máximo, algumas linhas do noticiário policial. Trata-se o tema como mera curiosidade, do jeito que se daria a notícia, por exemplo, de alguém picado por uma cobra num cinema da capital. Talvez, com menos destaque. Os temas fundamentais, que há séculos desafiam o ser humano, não são notícia de jornal. O enigma permanece, mas a Esfinge já não nos amedronta mais.

Que poderosas forças emergem de nossas mais profundas raízes e se transformam nessa negação da vida? Tilinta azul a imagem do tubo protoplásmico de uma primeira ciano-bactéria. Nele, a possibilidade da primeira troca de genes! A platéia queda muda diante de laços que não pode entender. O filósofo clama pelo "gênio da espécie", na tentativa vã de esmiuçar o que não é racional. As palavras se repetem como ondas na praia e perdem o sentido que nunca souberam ter. A idéia extraordinária ecoa nos versos dos poetas e nas letras das canções:

"Se um dia a vida te arrancar de mim,/ se morreres e ficares longe de mim,/Pouco importa, se me amas,/ Pois eu morrerei também.../Nós teremos para nós a eternidade/no azul de toda imensidão/Lá no céu, sem problemas,/Deus reúne quem se ama..."

Quase 400 anos depois da estréia da peça do inglês, no dia 2 de maio de 1950, uma francesa grava, pela primeira vez, as palavras desta canção, de Giovanna Gassion, o verdadeiro nome de Edith Piaf, a autora da letra do "Hino ao Amor" e sua primeira e melhor intérprete. A melodia é de outra mulher: Marguerite Monnot. Quase 400 anos depois, o mesmo tema e, diante dele, a mesma perplexidade...

Sem dúvida há um terrível desafio à compreensão na visão de que, sem a pessoa amada, é melhor morrer. Há mil anos ele nos provoca, dois mil, um milhão de anos! Olhem os jornais de hoje, algum novo filósofo com uma marreta na mão? Alguma manchete sobre o enigma que há milênios afronta a inteligência humana? Aposto que jornais e tevês falam de alguma nova guerra que se ensaia, num teatro cheio de outras tragédias e onde os atores não poderão limpar o falso sangue do falso punhal, e deixar tudo no jeito, para a próxima encenação.

A mídia, é óbvio, tem suas razões, que pingam em números na ponta da língua, como baba de boi: o Mundo gasta com armamentos 80 bilhões de dólares por ano, segundo o Unicef. O órgão das Nações Unidas para a infância informa mais: é vinte e quatro vezes mais grana do que o Mundo gasta com alimento e educação para todas as suas crianças...

Até quando, Mistério, irás nos desafiar?

 

|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|



101