A cabeça

09/05/16

A cidade se agita com a iminência da Olimpíada em agosto, competição cujo nome traz em si a piada e o carioca não deixaria passar o calembur*: a todo momento por aqui se menciona a próxima OlimPiada. Ontem, o site de notícias da Globo, o G1, publicou matéria sobre o assunto e, entre as fotografias exibidas, uma mostrava a cabeça de uma boneca, sem cabelos, caída no lodo cheio de lixo de algum fundão da vasta baía de Guanabara.

detalhe de fotografia da página do G1
detalhe de fotografia da página do G1

A imagem me atraiu e impressionou ao sublinhar a força do rosto humano para os seres humanos. Desde a infância me deparo com cabeças de bonecas com aquelas proporções, a mesma escultura, se poderia dizer, um estereótipo já de recém-nascido. São brinquedos, todos sabemos e pouco importa quem a jogou ali, se o acaso ou o fotógrafo, mas por ser uma face "fictícia", mostrava uma expressão incompatível com o resto da cena e, justamente suas feições congeladas e seu olhar sem ver, chamaram-me a atenção.

Há muito me encanta admirável a capacidade do rosto humano de manifestar os mais sutis sentimentos e emoções, dando transparência a turbulências, sentimentos e afeições do mais íntimo do ser. Desde muito cedo (em ambos os sentidos: na história da humanidade ou naquela de cada pessoa) aprendemos esta linguagem universal. Desde crianças pequenas (ou desde os antepassados mais remotos) somos capazes de perceber num rosto um estado de espírito, sentir o humor do indivíduo e podemos traduzir corretamente um pequeno franzir ou uma súbita ruga, cada manifestação das mínimas alterações psicológicas no outro.

Assim, aquele rosto fixo e indecifrável de uma boneca, com seu olho claro e vítreo e uma expressão banal de porcelana, se avultou em meio ao lodo imundo da célebre enseada a ponto de evocar poetas, melodias e sagas em verdadeira revoada de ideias.

* do Houaiss: substantivo masculino
jogo de palavras semelhantes no som, mas de significado diferente, que dá lugar a dubiedades
ou equívocos e muitas vezes é us. com finalidades jocosas; trocadilho; calemburgo volta

Mon, 9 May 2016 10:22:31 -0300

Obrigada, Clôde – gostei!

A boneca me lembrou uma hipótese do Konrad Lorenz (ou seria do Niko
Tïnbergen ou do Irenaus Eibl-Eibesfeldt? Já não lembro direito). Segundo
ele(s?), as feições e expressões de muitos bonecos (de gente ou de bichos) e
personagens de desenho animado apelam, provavelmente de forma inconsciente,
para a sensibilidade humana inata para rostos de bebês: cabeça arredondada
(e grande em proporção ao corpo), bochechudos, testa alta, olhos grandes,
nariz curto... Tal como em outros animais, principalmente mamíferos, essas
características dos filhotes seriam adaptações para induzir sentimentos e
atitudes de ternura e cuidado – o que, evidentemente, não quer dizer que
todos os seres humanos nasçam (ou se desenvolvam) dotados dessa
sensibilidade, já que propensões interagem com experiências. Uma das
evidências que ele(s) menciona(m) é a evolução cultural dos ursinhos de
pelúcia, que originalmente se pareciam mais com ursos adultos, focinhudos, e
com o tempo, sob a pressão das preferências do mercado, foram adquirindo
feições mais infantis. A pelúcia também é uma resposta à preferência (agora
dos bebês) por superfícies macias – macaquinhos preferem uma mãe artificial
forrada de pelúcia ou outro material macio a uma mãe de arame – mesmo que
esta seja quem lhes fornece o leite... (esses são experimentos da equipe do
pesquisador americano Harry Harlow – e são bem divertidos). (v.
http://psychclassics.yorku.ca/Harlow/love.htm). Há uma hipótese semelhante
para explicar as características de certas raças de animais de estimação
(aqui, por seleção artificial), como o pequinês, com sua carinha achatada e
seus olhões...

Bjs

Ana

Que interessante, Ana! Vou olhar com calma o link enviado, depois.
Parecem-me bem plausíveis as hipóteses mencionadas.
A mim, causou estranheza o rosto da boneca ser e não ser "humano"...
Lembrei-me de um belo poema de Guerra Junqueiro onde descreve uma prostituta abandonar um bebê nu em uma viela escura.
Parece-me, também, ter sido a boneca colocada propositalmente ali: os bracinhos estão muito certinhos...


Thu, 12 May 2016 19:42:15 -0300

Beleza de foto, Mermão..., aquele boneco no chão... e tudo ao redor...

      sem assinatura

A foto é do G1...
Gostei e a tomei como tema.

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