auto-retrato 

A morte da mosca verde

16/02/11

Tempestades rugem ao longe em trovoadas surdas. O céu carregado insinua que chegarão por aqui. Ao fechar a janela, vejo, caída no parapeito, uma mosca verde cintilante ainda mover as patas, prestes a morrer. Caída de costas, apoiada nas asas que, ainda a pouco, lhe possibilitavam, luminosa, boiar no ar. Finda, ali, com a naturalidade da morte fora de ritos humanos.

A tempestade se aproxima. Escurece e, pela hora do sol, não passa de duas e meia, quatorze e trinta. A tarde, com vento e umidade, antecipa o anoitecer. Um sopro arranca das copas, com delicadeza, as folhas mais velhas e as leva rumo ao leste ou nordeste. Não há mais que esperar - a água já rega generosamente a natureza sedenta. A mosca verde jaz imóvel. Antes de morrer levou as pontas de cinco patas ao meio do corpo. A direita, do primeiro par, permaneceu esticada. Depois de morta, o brilho de seu corpo me pareceu se ofuscar, mas pode ter sido apenas uma mudança na luz.

A generosidade das águas durou poucos minutos. Pouco depois, silenciou-se também o troar da borrasca. A chuva fina, quase garoa, ia e vinha enquanto a tarde se tornava noite. Já baixo, o sol brilhou na paisagem molhada por um momento.

A mosca verde morta, ali, no parapeito, me pareceu minúscula, insignificante, tão distante do espetáculo da varejeira em pleno voo, sempre batida de sol, mas no limiar da sombra (já notou que é nesta zona de transição que elas costumam ficar e acompanham o limite conforme correm as horas?) Pairam ali imóveis até o momento de uma evolução tão rápida que escapa à acuidade da visão humana. Logo, algum vento ou vassoura varrerá dali seu cadáver, como bilhões de outros de mais um dia na vida da vida. Do eventual elefante ou baleia-azul a formas de vida invisíveis ao olho nu. Nascer e morrer fazem a vida viver.

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