Altos!

16/01/98


De repente, no meio da maior correria, uma criança berra: tô de altos! Pronto. Tem seu tempo, seja lá para o que for. Talvez para conferir um arranhão ou porque deixou cair algo que tinha no bolso ou na mão; apenas para tomar um gole d'água ou, simplesmente, fôlego. Não importa. As crianças acreditam umas nas outras e se alguém faz uma declaração de "altos!", é por que tem lá seus motivos, bons ou não. Basta a declaração. Depois, aprendemos a desconfiar... sim, depois, porque todos já fomos crianças com a pureza que lhes é peculiar.

Hoje, o aprendiz de cronista tem vontade de berrar como as crianças: "altos!" - e fazer qualquer outra coisa, mostrar fotografias ou desenhos, passar um lista de links, qualquer coisa, menos cronicar. Aí, toca o telefone e uma amiga conta que sua colega ligou só para pedir de novo o endereço das crônicas, pois se acostumou a fazer isso no trabalho: ler as coisas que se escrevem aqui... Os computadores, é claro, estão sempre dando pane e sempre se perdem arquivos, principalmente os favoritos ou bookmarks. O fato é tão banal que minha amiga nem se preocupa em explicar. Conta, isso sim, que alertou a colega: não leia a crônica de hoje, não! Você vai pensar que foi escrita pra você! Não leia... - enquanto a outra, do outro lado da linha avisava, cheia de gula: já estou abrindo... pera aí... por acaso é a do Acaso que não devo ler?

Depois, falou da colega e de sua dificuldade em decidir, de sua aversão a escolher. Disse-me: não, ela não pode ler essa crônica, senão nunca mais vai pegar o ônibus certo, vai pegar o outro, aquele que vai explodir... Com algumas pinceladas traçou um perfil do jeito da colega - nem seu nome chegou a dizer. No entanto, esse jeito me pareceu muito familiar... Decidi arriscar e acertei o signo do zodíaco da tal colega: igual ao meu! Acaso?

O telefone de novo. Não sei se berro que estou de altos para o telefone ou para o computador. Acontece. Espero que seja mal passageiro... Minha nossa, dona Sabrina! Que confusão! Não havia nenhum passageiro malvado no ônibus, dona Sabrina, nem ônibus, nem bonde, nem avião. O ônibus era da outra cônica e eu só ia dizer que espero que essa coisa de querer pedir altos, parar de fazer crônica, passe logo, só isso. Espero que seja mal passageiro como uma gripe...

Dessa vez era outra amiga. Perguntou: você acha que acreditar em duendes é diferente de acreditar no Acaso? Também tinha lido a crônica e vinha com uma história complicada onde duendes roubavam chinelos de moças perdidas no bosque... Ora, só quem nunca se perdeu num bosque pode duvidar. Perder-se no silêncio cheio de pios e sussurros de uma mata é uma experiência tão forte e tão cheia de mistérios, que as travessuras de duendes ou as artes de uma fada logo se tornam coisa corriqueira. É preciso perder-se - ou achar-se - na floresta para compreender o que digo aqui.

Não temos mais direito ao "altos!"... Como dizia a Raposa ao Pequeno Príncipe, você é responsável por aquilo que você cativa... Terrível, não? D. Marcos Barbosa, que morreu há pouco, da Academia Brasileira de Letras e professor de meninos levados, que podiam gritar "altos!", na década de 50, foi genial ao traduzir essa passagem. No original, em francês, é apprivoiser. Literalmente seria domesticar um animal ou tornar mais sociável uma pessoa. Existe a expressão apprivoiser une femme, que o "Grande Diccionário Contemporeneo" de Domingos de Azevedo traduz como "habituar uma mulher a ouvir falar de amor"... Com tudo isso, torna-se óbvia a dificuldade para traduzir o namoro de uma raposa com um príncipe vindo de outro planeta descrito numa língua onde existe uma palavra com todos os significados de apprivoiser...

Terrível, não? Ia dizer somente que perdi o direito ao "altos!" pela existência de uma única leitora, mas percebi que apesar da minuciosa lição da Raposa, que tive tão cedo, nunca aprendi, de verdade, nada relacionado ao apprivoiser e suas implicações. Como diz a Raposa do genial livrinho de Saint-Exupéry, "só conhecemos aquilo que cativamos" - e tomo emprestada a palavra de D. Marcos mas, se você preferir, pode dizer: a gente só conhece aquilo que apprivoise, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer nada. Compram tudo pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se você quer um amigo me apprivoise." Ou, se você preferir, pode dizer: "Se você quer um amigo me cative."




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