Analfabyte


04/09/97

A vela vai acabar e, se a vela acabar, tudo pode acontecer. Acendi uma vela para o santo. Como não tenho nenhum de minha particular devoção, tampouco de qualquer outro tipo, acendi para Santo Anônimo. É que o maldito janelas, do senhor Porteira, está com dor de barriga. Quando menos se espera, estampa na tela uma mensagem de filme de terror. Sei lá quem cometeu um ato ilegal e será punido. Fica nas entrelinhas: dane-se você e o seu trabalho. O senhor Porteira é implacável com os fora-da-lei. Não dá a menor chance de diálogo, a única coisa que funciona na maldita tela é um "botão": FECHAR. E o dane-se, dona Sabrina, entenda-o como quiser. O sei lá quem não deveria ter feito o que fez... Outros rompantes das janelas informam que ocorreu uma exceção fatal. Fatal? Meu deus, e o que farão com o cadáver? Outras, falam de uma senhora suspeita, uma tal de Página Inválida e há as que vêm cifradas, com minúcias sobre o esvaziamento da pilha. Nenhuma fala do enchimento do saco...

Ontem, precisava entregar um trabalho. Dependia, para tanto, de toda essa tecnologia orquestrada, aqui, pelas janelas do senhor Porteira - coisa simples: era só enviar pelo correio eletrônico. Percebendo a conjuntura psico-individual e o adiantado da hora, quase uma da manhã, o microsoftware encarregado do despacho, resolveu demostrar, como criança "exibida", todas a mensagens de terror de suas entranhas. E eram muitas. Confirmaram o que já supunha. O senhor porteira, contratou um roteirista de filmes zê para tevê, para fazer os tais alertas. Re-instalei o programa, alterei o registro, fiz o diabo. A mensagem lá, com o trabalho pendurado. Negava-se a viajar. Exercitei velhas palavras, há muito esquecidas, em gentilezas ao tio Bill...

Toca o telefone. Uma amiga. Coitada. Ficou tão perplexa com a minha fúria, que era incapaz de qualquer coisa, de falar, de agir. Não desligou. Nada disse... coitadinha, só escutou. Meia hora depois, havia sinais de recuperação do equilíbrio psicológico perdido e mandei o Porteira, as janelas e tudo mais... nem precisei mandar, eles foram, fiquei de conversa fiada com a amiga, por uma hora, um pouco mais...

Quase três da madruga, tento mais uma vez e tudo funciona. O microsoftware não me diz nenhum desaforo, e o trabalho segue imediatamente. Parte sem dor. Horas depois, ao acordar, o mesmo programa, traz algumas mensagens. Não respondi a nenhuma - ressaca pura. Amanhã respondo. Mas voltam as sincronicidades. Essa coisa fascinante de antenas que não dependem de chips - não senhora, detesto batatinhas ensacadas sem casca, dona Sabrina. Dizia: antenas que não dependem nem de bytes nem de nada. Uma das mensagens explicava logo no subject (ah, quanto nos moldam esses microsoftwares!) "Analfabytes". Dela, tomo empretadas algumas linhas, mui esclarecedoras:

... eliminei o pior pedaço desse universo jurássico: o manual de instruções. Concordo totalmente com o Nicolas Negroponte: enquanto houver o tijolo do manual de instruções, continuamos na pré-historia da informática. Ninguém precisa ler o manual de um liqüidificador. E o com-puta é, na verdade, um eletrodoméstico. E a existência de todos esses sistemas que não se entendem nos transforma, a todos, em cobaias da indústria. Cobaias que pagam para ser cobaias. Tenho uma certa raiva de tudo isso. E utilizo esse universo como ferramenta e nada mais.

Fiquei com inveja, confesso. Sábio correspondente: "ferramenta e nada mais". Quero ser analfabyte! E, dizer isso lembra-me Albert. Péra aí, não analfalbert, que quase todos somos, nos enigmas relativos a Albert Einstein. Conta-se que ao chegar a Nova Iorque, floresciam como novidade os anúncios de néon. Numa grande esplanada, de onde se podia avistar inúmeros desses reclames (palavra da época), pediram a opinião do mestre: - o que acha? Ao que ele teria respondido: "Belo espetáculo para um analfabeto." Eu, quando crescer, quero ser analfabyte...

A vela se esvai. Obrigado, Santo Anônimo.




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