Chinguiço



03/09/97

É pouco provável que você saiba o nome do rodilho que os carregadores põem no cachaço, para apoiar o pau, isso, quando fazem fretes a pau e corda. Chama-se chinguiço. Eu também não sabia. Aliás, continuo sem saber, mas podemos, juntos ir atrás. Não, dona Sabrina, não precisa chamar a polícia. Chinguiço não é nada disso que a senhora está pensando, tampouco coisa de comer.

Esbarrei por acaso com a palavra, com o verbete, no dicionário. Lia a definição e supunha não poder entendê-la de tanto que me ria. Chinguiço! E lia outra vez. Você, leitora favorita - minha ascendência árabe faculta ter, como os sultões, uma favorita - deve estar imaginando que fui pescar essa pérola em algum pai-dos-burros lusitano, pois que cá, é usada e abusada a senhora cachaça, mas poucos tiveram o prazer de conhecer seu cônjuge, o cachaço. Muito prazer. Engano seu. Está assim, no brasileiríssimo Aurélio, quiçá copiado sem mais delongas, d'algum léxico de lá. Sendo assim, dize lá mestre Aurélio, que frete é esse a pau e corda e que pau apóiam os carregadores no que chamas de rodilho e o pingo, isto é, o cachaço dize tudo mais que mo puderes dizer.

É um hábito velho navegar nos mares do Aurélio. Cachaço? A parte posterior do pescoço. Rodilho? Pedaço de pano velho; trapo. Frete a pau e corda ele fica a me dever. Pronto, dona Sabrina, pode chamar a polícia, que vejo que fiquei louco de vez. Talvez meu leitor solitário, tão só quanto o neurônio de uma... cala-te boca, cala-te boca - talvez, esse leitor não tenha achado a menor graça na definição de chinguiço, sequer se diverte com o próprio som da palavra: chinguiço. Ora, talvez lhe falte um pouco de tempo, sim, é jovem demais para dispor dos elementos que permitem imaginar as cenas hilariantes com chinguiço.

Houve tempo em que aqui, ao som do mar e à luz do céu profundo, descansavam nas redações dos jornais os senhores censores. Em sua onipotência paquidérmica, divertiam-se em destruir, numa penada, horas de trabalho de um pobre repórter ou editorialista. Normalmente faziam isso quando a oficina já esbravejava por atraso com o pessoal da redação - aí estava a graça. Não havia mais tempo para nada! Nem para corrigir, nem para substituir. Primeiro, saíam os espaços em branco. Mas os senhores todo poderosos sentiram-se denunciados pela inédita mancha branca na página, cogitaram que, obliquamente aquilo os "codinominava" - expressão mui cara aos da tesoura e por eles próprios forjada - pois bem, os codinominava de manchas negras, e prefeririam ser míqueis, com toda certeza. Isso mesmo dona Sabrina, míquei desvenda os subterrâneos dos manchas negras, era o nome do filme.

Proibidas as manchas brancas, os jornais começaram a publicar textos de ilibada reputação das famílias em marcha com deus pela liberdade. Textos com carteirinha, atestado de sanidade e firma reconhecida. Eram receitas de bolos, bulas de medicamentos, poemas de Camões, de Pessoa, etc. Às vezes, o tesoureiro... não, tesoureiro é outra coisa. O barbeiro... também não, o da tesoura, cortava apenas algumas linhas, as que julgava trazerem nas entrelinhas grave ameaça à infatigável família - não, não, la famiglia, na Itália é outra coisa, dona Sabrina... ou, talvez não - ameaçando a infatigável família, em perene marcha com deus pela liberdade...

É aí que imagino a cara do censor se um repórter mais moleque, trouxesse, como alternativa ao perigoso texto suprimido, apenas isso: chinguiço é o rodilho que os carregadores põem no cachaço, para apoiar o pau, quando fazem fretes a pau e corda.




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