Ao sabor do lembrar

21/10/10

Marinheiros norte-americanos iam de um lado para outro com imensas e extravagantes golas azul-marinho - viria delas o nome da cor? - e calças brancas, de bocas muito largas a esconder os calçados. Era a praça Mauá, ao lado do outeiro sobre o qual, séculos antes, beneditinos erigiram sua fortaleza, pedra sobre pedra, com paredes tão espessas nos andares mais baixos, que cumpria caminhar alguns passos para chegar às janelas. Estudávamos ali e começava a segunda metade do século vinte. Prometia-se uma indústria de automóveis no Brasil. Só existiam carros importados. Zombávamos dessas promessas e das zombarias nasciam piadas, como para tudo. O Rio de Janeiro ia, pela avenida Rio Branco da Rádio Nacional e Cais do Porto, de um lado, à Cinelândia do outro, com o Obelisco como ponto final - monumento incompreensível para mim. Íamos ver carros importados, muitos , lado a lado no pátio do cais, com os cromados - e como gostavam de cromados os norte-americanos! - recobertos por espessas camadas de graxa. Alguns pareciam dormir ao relento, ali, há vários anos. Um colega perguntou se sabíamos o que significava jogar fumaça nos olhos de uma menina e como todos ignorássemos, explicou: é pedir um beijo. Talvez as canções de Sinatra estivessem por trás da explicação. Pouco depois viria o Rock Around the Clock com alucinação geral e quebradeira no cinema São Luiz, no Largo do Machado. (Nunca soube se o Machado do largo seria o de Assis). A vida ao redor dos quinze anos sempre parece luminosa... Extrapolo - a mim, pareceu, ou melhor parece hoje, através do filtro de tanto tempo. Quem sabe haja um efeito relativístico nesta perspectiva, onde a lembrança flui por seus próprios vínculos, com a menor interferência possível da razão e as coisas desapareçam... Juro, queria escrever 'nos pareçam'.

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