autorretrato 

Apaixonados

26/10/16

Hoje não trago testemunhos nem invencionices a pretexto de crônica, pois encontrei temas extraídos de fragmentos da memória e misturados às belas cores de uma caixa de lápis de cor, aqui publicados dez anos atrás.

O tema de fundo era a paixão, aquele estado muito alterado que nos acomete umas poucas vezes na vida e faz de cada um uma espécie de idiota, quase incapaz de processar ideias além da monótona repetição do nome da pessoa amada e declarações de incondicional devoção a tal ser transformado, ao curso do transtorno, em razão única e absoluta de tudo existir.

A paixão é uma heresia e, todavia, no século passado chegou a ser exaltada e procurada com afinco como caminho seguro para a idealizada felicidade. Os versos de Edith Piaf feitos para a canção de Marguerite Monnot sintetizaram para muitas gerações uma espécie de ideal amoroso. "Se tu me amas o mundo pode até desmoronar" era a ideia central e, a partir daí, em arroubos sucessivos se exemplifica a exaltada devoção do apaixonado(a) pelo objeto de sua paixão.

Farei qualquer coisa se você ma pedir, afirma a canção e segue-se uma listagem de absurdos como ir buscar a Lua até renunciar aos amigos. Por fim, Piaf imagina a morte de seu amado e garante não se importar pois, se ele a ama, ela morreria também e conclui afirmando "teríamos então a eternidade e, no azul, toda a imensidão e no céu, mais nenhum problema" mas antes de concluir, busca ainda uma vez cheia de angústia "você acha que nos amamos?" antes de arrematar: "Deus reúne os que se amam".

Felizmente as paixões são passageiras como as nuvens e o azul do céu logo se restabelece em toda sua limpidez. Se você quiser ver a caixa de lápis de cor e os apontamentos daquela época, notas de uma outra pessoa, ei-los aqui. A natureza deve ter suas razões na criação de toda paixão...

Wed, 26 Oct 2016 13:36:21 -0200

parabéns, mais uma vez você descreve com maestria o indescritível
Beijos da fã mais antiga (60 anos de fãzice)

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Obrigado, menina.
O assunto fervilhou-me o dia todo na cachola. No fundo se trata de um tema fascinante e bem pouco abordado. Pode vir mais por aí...


Wed, 26 Oct 2016 18:38:36 -0200

Li e reli o que você escreveu, com o sabor francês tão característico... Mais uma vez, uma delícia de texto. Logo logo vou reler. E não uma vez só...

Viva Mermão!!!
(... e suas paixões)

Isto é: nossas.

bjeijos de fim de tarde...

      sem assinatura

O poema da Piaf me impressionou desde que o conheci.
Com a música da Monnot se torna algo além do razoável, ou seja, é pura paixão.
Obrigado.


Thu, 27 Oct 2016 10:20:36 -0200

Lindas (as duas, esta e a colorida)!
Obrigada!

As canções francesas são mesmo incríveis nessa questão da intensidade (cf. Ne me quittes pas - que ouvi anos atrás com a Nina Simone, uma interpretação incrível! Talvez ainda dê pra encontrar na net). E para um estado de espírito talvez mais reflexivo, mas também muito apaixonado, gosto muito de La question, da Françoise Hardy: “Tu es le sang de ma blessure, tu est le feu de ma brulûre... Tu est ma question san réponse, mon cri muet et mon silence...). Fora os tangos, que acho maravilhosos, alguns de nossos sambas-canção e por aí afora. Também adoro as coisas do Chico - nessa linha, lembro de Atrás da porta e, uma que andou me martelando a cabeça até que consegui decorar de novo, e que acho um dos versos mais bonitos e bem trabalhados na escolha de palavras do nosso cancioneiro: Pedaço de mim.
Fora que há paixões ( e perdas, vazios) de outros tipos (ex: La Bohème)...
Melhor parar, senão não trabalho hoje,..

Bjs
Ana

O Flávio Gikovate me assinalou, no curto período em que fiz terapia com ele, ser o amor (no sentido de envolvimento amoroso) o tema quase único de todo cancioneiro popular. Minha observação o confirma (com exceção de grosserias modernas mais próximas da pornografia). A literatura e o cinema, também têm o amor, os apaixonados, as tremendas perturbações psicológicas derivadas desses sentimentos como fonte essencial a suas produções. Continua, pois, a surpreender que a filosofia, a ciência - enfim, o conhecimento humano (salvo a psicologia) - deixarem de lado um assunto fundamental na vida de todos (como procurei mencionar na crônica de hoje).

"Pedaço de mim" traduz com precisão e maestria o poder desses estados de profunda perturbação psicológica.

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