crônica do dia

Coloridos

26/10/06


O paletó de veludo côtelé, cor-de-rosa, estava fadado a desaparecer. A vida ou os deuses têm lá seus meios e razões, ou o que for que a nós parecem juízos e razões. Quebrou-se o quebra-vento e, sem alarde, foi-se o rádio-gravador e o paletó jogado com displicência, como em vitrine chique, sobre a forração negra do banco de trás. Mas há sempre um antes e antes do paletó cor-de-rosa houve o azul de um vestido.

O fulgor azul ofuscou e se impôs como clarão de relâmpago em noite escura. No cenário austero, de cores sóbrias, o vulto que Ariel apenas entreviu, de passagem, de moça alta, cabeleira negra, revolta e com um esvoaçante vestido azul, de roda farta e decote largo a se espraiar... Não, por certo num relance, no instantâneo do passar por uma porta ao caminhar por um corredor, neste flash, é impossível discernir tais minúcias e outras, que Ariel já começava a enumerar.

É tudo muito mais simples, em um átimo o esplendor azul que ele mal divisou, a moça que não viu, o vestido que não saberia contar, o nada que parece tudo em um tempo muito menor que um instante, foi o bastante para lhe dar a certeza inabalável de que estava irremediavelmente apaixonado por aquela que nem vira ainda. A paixão não caminha pelas sendas da razão.

Paixões de esplendor fulminam como acúleo viperino. Num primeiro momento, dá torpor de alucinógeno, enquanto o veneno se dilui e age nos subterrâneos. A razão não tem mais razões e é a emoção, descontrolada, que se faz imperatriz da nau desgovernada. De início é só paixão e, aos poucos, a paixão também se contamina pela peçonha que empapa tudo. Silenciosamente criamos idéias, ideais, fantasias. Fascinados com a ave da felicidade, logo a metemos em gaiola, ainda que de ouro e pedrarias e privado da liberdade, o pássaro morre - precisa do azul esplendoroso e infinito.


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