Aprender

03/04/98



Um velho de barbas brancas já deveria ter aprendido a viver, no entanto, tudo que conseguiu foi perder a esperança de um dia aprender. Conseguiu apenas olhar essa palavrinha - esperança - cheio de desconfiança e preferir dizer que ter aprendido a viver põe um ponto final na vida e eqüivale a morrer. Aprendo uma coisa qualquer. Pronto! Guardo esse saber numa gaveta - ou numa dessas pastas que o Porteiras copiou do Macintoch - guardo, e sei que está lá, que posso usar quando precisar... Não é assim que funciona?

Só que da próxima vez que precisar do que aprendi, o meu saber guardado nos antigos diretórios que viraram pastas, vou encontrar apenas verdade morta, só lembrança do que já foi verdade, em outras circunstâncias e diante de uma situação que não é aquela que me desafia agora... Cada novo desafio é um novo processo de aprendizado.

De um modo geral, me parece, preferimos as fórmulas. Alguém que nos diga: faça de tal jeito que dará certo. Pouca gente demonstra interesse ou curiosidade de ir além quando está de posse da fórmula. Somos preguiçosos, isso sim! Claro que falo, em princípio, em relação à Vida, aos desafios com as relações, no lidar com essa coisa difícil (deveria ser fácil e natural) que é viver. Para as lidas no campo da ciência, da tecnologia, é claro que esse saber engavetado é de suma utilidade. Sempre imagino o longuíssimo percurso (e quanto tempo!) um engenheiro precisaria para calcular a viga de uma ponte, por exemplo, se começasse com simples somas e subtrações (operações que podemos dizer naturais, pelo menos para os seres humanos) e seguisse somando até "perceber" a multiplicação, diante de parcelas iguais - o que por certo lhe daria um enorme prazer, essa percepção - e depois, sempre passo a passo, acabasse por descobrir a potenciação e assim por diante, até reinventar o cálculo integral e diferencial! É possível que fosse uma experiência pessoal extraordinária, mas dificilmente teríamos pontes de concreto armado...

Apesar de brancas as barbas, jamais esquecerei a primeira prova de cálculo. Tinha dez questões e cada uma valia um ponto. A primeira era uma pergunta: o que é derivada. As outras, pediam para derivar nove funções básicas, as mais simples. Ora, recebíamos aquilo como uma tabela para ser decorada: derivada de x² = 2x, etc. (será que me enganei?) e assim por diante. Eu ficava irritadíssimo de não poder saber como se havia chegado àqueles resultados. Recusava-me a decorar a tabela das derivadas... (volto ao mesmo exemplo: seria mais ou menos como não querer decorar a tabuada). Na hora das notas experimentei um certo orgulho idiota: eu tinha tirado um, mas havia um colega que tinha tirado nove! Eu soubera explicar o que é uma derivada. Ela (era uma colega) não! Acertara as nove derivadas, decoradas, sem saber o que estava fazendo, pensava eu...

Ora, quando aceitamos incorporar a herança de milhões de cabeças, que construíram todo o pensamento humano antes de nós, sem ter de percorrer cada pegada do fascinante "descobrimento das verdades científicas", estamos nos aceitando um pouco mais humanos apenas, estamos pondo de lado, por pouco que seja, nossa infinita vaidade e sendo mais "todo mundo". Nossa inveja dos deuses - que é a vaidade fundamental - está sendo aplacada nesse esboço de humildade.

Para fazer pontes ou curar enfermos, o saber guardado em milhares de livros - quem já experimentou o assombro das bibliotecas? Já sentiu a própria impotência diante de milhões de volumes, que acumulam poeira como desafio a esse saber acumulável? - guardados em livros, dizia eu, e antes, em papiros, peles ou tabletes de argila e, agora, em fitas e discos magnéticos, todo esse aprendizado de milhares ou milhões de anos é útil e necessário ao médico, ao engenheiro, ao químico, etc. Para ter as barbas brancas sem ter que confessar não ter ainda aprendido a viver, esse saber acadêmico, que pode ser guardado nas bibliotecas e guardar o pó de muitos séculos, não só não é necessário como pode ser até um estorvo...

Queremos paz e fazemos a guerra; queremos igualdade, mas somos gananciosos; queremos dividir irmãmente, mas somos cheios de avidez, cobiçosos; queremos paz e fazemos guerra. Somos o modelo para o que ensinamos aos pequenos, queremos que eles sejam como nós, apesar de repetirmos o nosso desejo de uma sociedade nova, de homens bons, lúcidos, capazes de amar. As escolas não estão preocupadas com o viver. Existem para preparar para a "luta", apesar de ecoarmos, todos nosso desejo de paz. As escolas não existem para as pessoas, para o indivíduo. Preparam funcionários e profissionais e militares ou o clero. Apesar de repetirmos, a cada passo, que o ser humano é o mais importante...

Um velho de barbas brancas já deveria ter aprendido a viver, no entanto, tudo que conseguiu foi perceber que é preciso muita energia e verdadeiro interesse, na Vida, para aprender a viver, a cada novo dia.



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