Demasiado animal



02/04/98


A gata acompanha com o olhar o vôo indeciso do mosquito. Seu corpo, de uma elegância proverbial, mostra os músculos todos prontos para o bote. Com as patas dianteiras derruba o inseto, invisível para nós e ainda brinca com o moribundo no chão, antes de mastigar aquilo que mal se vê.

A mosquita não pensa, aliás ela nem existe como palavra, mas creio que vocês sabem do que estou falando, ainda mais agora, que o ministro novo posa de mata-mosquito na televisão. Bem, imagino que a mosquita não pense, pelo menos assim, do jeito que a gente acredita que todos pensem, pois só podemos saber, mal e mal, o nosso próprio jeito reto ou torto de pensar...

Apesar de ser um bicho que não pensa como penso que todo mundo pensa, a mosquita muda completamente de comportamento pelo simples fato de ter-se acasalado, como se costuma dizer, ou seja, depois de receber um pouco do sêmen de um mosquito. A partir desse momento, quando começa a fabricar os ovos que ela depositará em água fresca, passa a ter uma fome que não conhecia: sangue. Até então, tal como o macho, lhe bastava um pouco de néctar colhido das flores e outras trivialidades fáceis de achar no imenso jardim de Deus. Agora seu corpo precisa de novos ingredientes, para fabricar a próxima geração de mosquitos e estes as flores não podem fornecer. Sem suas refeições vampíricas seria incapaz de fabricar os mosquitos de amanhã...

Os mosquitos, machos, jamais picam. Como não produzem ovos dentro de si, desconhecem o que é fome de sangue. Entre os invertebrados, as diferenças de papel, e a própria essência dos papéis da fêmea e do macho, aparecem mais gritantes. Os machos têm uma única prioridade: procurar uma fêmea da mesma espécie e copular. Em alguns casos, essa "razão de existência" se torna até escandalosa. Há borboletas que não se alimentam como adultos, a forma que chamamos de borboleta - antes, são lagartas - emergem sem aparelho digestivo! Alguns machos de aranhas são dezenas de vezes menores do que a fêmea. Passeiam sobre seu corpo, rumo aos órgãos genitais, quase como carrapatos. É um mundo estranho, muito diferente do nosso... Esta desproporção, aliás, lembra um conto de Bukowski, onde uma mulher, meio feiticeira e muito má, transforma o amante num ser minúsculo, que ela manipula como quer... Quem conhece o autor já pode imaginar... O final é trágico!

No entanto, mesmo entre os vertebrados, entre os mamíferos, é possível intuir como essas heranças passaram de bicho em bicho... Tudo bem, Dona Eufrásia, os vertebrados são outra coisa, muito distante dos insetos, sei disso, muito menos quis insinuar que a senhora é parente das baratas. Fiquemos com nossos primos mais chegados: já parou para contemplar, digamos, o comportamento de uma gata no cio? Uma gata de apartamento, sem nenhum gato por perto? Já ficou algum tempo observando um galinheiro, desses de antigamente, com as aves soltas no terreiro? Está em toda parte, Dona Eufrásia, na natureza, em torno de nós - é só olhar. Os padrões se repetem. Os machos têm o comportamento típico de macho e vice-versa.

Outro dia, o jornal da tevê mostrou uma cena singular. Como quase todas as notícias, essa também vinha de Brasília. Tal como nas novelas, tratava-se de um triângulo amoroso banal: a esposa disposta a enfrentar diversos perigos para ter uns momentos a sós com o amante. O inusitado é que as personagens, apesar dos nomes tirados da literatura - Capitu, Otelo, etc. - eram babuínos do zoológico da capital. (Eis outra palavra esquecida pelo Aurélio: babuínos.) Lá, alheios ao jogo imundo da política, porém também num grande lago, a exemplo de ministros e poderosos, esses macacos vivem em pequenas ilhas, isolados uns dos outros, pois - sempre de acordo com o repórter - eles detestam água e só em casos extremos ousam nadar. Num caso de incêndio na ilha, por exemplo. Pois Capitu, uma senhora baubína casada, costuma deixar o marido e o filho e ir, à nado, passar alguns momentos com Otelo, um jovem babuíno que vive em outra ilha, a uns sete metros de distância... Na matéria, se via que o marido berrava muito, pulava, corria com o filhote a o imitar, mas não tinha coragem de mergulhar e nadar atrás da esposa. Tentava impedi-la, até o momento em que ela caía no lago... Depois, Capitu voltava e era recebida com muita festa pelo marido, cujo nome esqueci.

Banal? Sim. Não seria notícia nem em Taquaritinga se em vez dos macacos fosse a história de mais um casal. Porém, diante da possibilidade de Capitu estar apaixonada, já há um bando de estudiosos acompanhando o caso que, por isso mesmo, já mereceu um bom tempo no horário mais caro da televisão... Seria Capitu mais "humana" que os outros macacos? Ou seríamos nós mais animais do que nossa infinita vaidade permite supor?

As mosquitas só têm sede de sangue depois de engravidar...



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