O carteiro

7/01/98


O carteiro traz cartas que são contas, contas a pagar. Vem todos os dias e traz novas contas, uma depois da outra e o rosário de contas é uma fila pro banco que não é de jardim, nem de praça, nem propício para se namorar. A moça brinca com o carteiro: "você nunca traz cartas de amor?" Federico Fellini contava que a pergunta que mais o desconcertou não veio de nenhum jornalista, mas de uma mulher do povo: "por que você não faz uma simples história de amor?" Acho que ele respondeu que não sabia, não lembro. O carteiro ficou tão desconcertado quanto o cineasta, ou mais, com a pergunta da moça. Ela, no mesmo dia pegou um envelope e escreveu bem grande: "Carta de Amor" e endereçou para si mesma. Queria ver a cara do carteiro ao descobrir aquela carta no meio das contas...

Não sei se a moça botou alguma coisa dentro do envelope. Pode ter sido apenas uma folha em branco. Seria assim a verdadeira carta de amor? Em branco, para que o amado ou amada encontrasse na folha de papel, todas as possibilidades? Em branco, folha imaculada e virgem como o sonho de um poeta? Não sei. Nada entendo desses códigos e afazeres. Como Fellini, não saberia contar uma simples história de amor... Desconfio, até, que quando se começa a mandar cartas é porque o encantamento se esvaiu. Encontrei uma velha carta, a cópia de uma velha carta, é óbvio. Velha e longa carta - a maior que já escrevi. Copio o início, menos de um décimo da enxurrada de palavras. Não sei bem porque faço isso. Se fosse mulher diria: é a intuição feminina que me diz pra fazer... Passaram-se muitos anos e continuo o mesmo idiota que a carta descreve, como o príncipe Mischkin de Dostoievski. Que fique como oferenda à moças que não conheço e jamais conhecerei, para usarem como recheio de envelopes com títulos de cartas de amor...

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Tenho vontade de conversar com você, agora. Como não dá, apelo pare este vício solitário, esta masturbação com palavras. O mais certo é que tudo isso morra aqui mesmo, na barriga do computador. Mas queria muito que você me visse como sou, cheio de dúvidas e defeitos, sem o filtro de nenhuma fantasia. Queria muito conseguir falar com simplicidade as coisas que sinto, ou penso ou, até mesmo, penso que penso. Porque já não sei mais de mim, ou talvez nunca tenha sabido mesmo e, agora, esteja começando a perceber... só que ainda não sei bem o quê. É preciso ser simples para falar com simplicidade. Que fique como desculpa para tanta complicação...

Juro: este jeito embaçado sai à revelia. Deve ser reflexo da bagunça que vai em mim. Estava aqui, triste, uma tristeza sem explicação e revendo no vetê da cabeça nossa conversa de ontem. Deu vontade de continuar a conversa. Pareceu-me tinha um monte de coisas a dizer. Não queria telefonar. Não queria bulir nas coisas dentro de você. Além do mais, era provável que você estivesse com a Gra, e toda sua graça, comprando brincos, enquanto brinco com frases, idéias e imaginação - palavras, meras palavras. Elas entram pela orelha, e saem na outra, ou não. E os brincos ficam lá pendurados...

De repente me pareceu que, pela primeira vez, faltou a leveza de que falamos, e ficaram pegadas na areia da praia. As primeiras marcas, como esta primeira carta que escrevo pra você... Que possam as ondas e a maré alta lamber e beijar essa areia até fazer virgem a praia outra vez! Tudo isso, plagiando a imagem linda dos versos de uma música que o mundo canta em francês, em inglês e marcou nosso tempo de criança: "Les feuilles mortes", lembra? "Mais la vie sèpare/ ces qui s'aiment/ tout doucement/ sans faire de bruit./ Et la mer efface sur le sable/ les pas des amants desunis."

E assim você vai vendo como me perco pelo caminho, como sou dispersivo e, como menino, sigo distraído a borboleta que passa, corro atrás da faísca luminosa, que jamais poderei alcançar. É bênção e maldição a facilidade de brincar com palavras, fazer associações, remontar os cacos do mosaico de letras e repetir o que nos parece novo e está por aí, na boca do povo. De novo: estava aqui, triste, uma tristeza sem explicação, revendo no vetê nossa conversa de ontem...

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E a carta seguia por mais 15 ou 16 páginas...

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