Cecília

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21/01/98


Ah, o poder incomensurável que tem sobre os homens um belo rosto de mulher!... ou o rosto de uma bela mulher... ou o rosto e o corpo e os cabelos e as mãos e os pés... enfim, que poder, o da mulher quando, além de mulher, é linda! Era lindíssima.

O olhar fixo, a língua bifurcada, a presa hipnotizada... presa sim, presa de tal olhar, por ora, momentos antes de virar jantar. Serpentes e sapos, príncipes e princesas! Ah, de toda visão ao cego negada, qual se compara ao rosto da amada? E Frederico olha, já nem cisma mais. E Frederico olha e, a custo, balbucia: - como você se chama?... - e o silêncio não se mede no tempo comum dos relógios e Frederico nem sabe se fala ou imagina as palavras que rolam como águas há muito represadas, já, agora impossíveis de controlar. E Frederico olha e fala: - Que importa?

Ah, quando tudo relampagueia e alumia razões que a razão desconhece... Sim, que importa? Que importa se és Sophia ou Hermenegilda? E Frederico, que era certíssimo ser Frederico e Silva, claudicou pela primeira vez. "Porra! Como fui dar uma mancada dessas, como não vi que um nome pouco importa? Que importa se és Cecília ou Margarida, já que posso ver teu semblante e sentir pulsar e latejar em mim o que só em mim posso sentir pulsar e latejar!" E Frederico titubeia. Sabe que lhe escapam as rédeas de si. É como se seu corpo percebesse o absurdo todo e assumisse o comando, cortasse os caminhos aos porões dos porquês e, para se precaver dos riscos de qualquer motim, deixasse o próprio Frederico num estado de torpor, escolhendo mui sabiamente que sentidos aguçar e quais outros entorpecer. Ah, havia, por certo, razões, que era preciso ocultar à razão. - Como você se chama?

- Cecília

- E quando a gente pode se encontrar outra vez?

Aquele cara era, no mínimo, surpreendente. Podia esperar tudo, menos essa pergunta sobre um próximo encontro. Por que outro e não aquele, se estavam os dois ali? Interessante. Preciso sacar o peça... - E você, como se chama?

- Frederico.

Estavam muito próximos. Frederico se perguntou pela enésima vez por que não abandonava o mundo verbal e passava à ação - a única coisa sensata a fazer. Na teoria estava pra lá de convencido; na prática, as idéias zumbiam, como enxame de moscas e as palavras subiam como vômito até a garganta. Frederico titubeia. - Laodicéia! - Cecília pára seu olhar naquele rosto. Marcado, vincado, curtido, sofrido, mas um belo rosto. Olhos duros de águia. Olhar penetrante que, embora parado em seus olhos, ela sentia despí-la e beber, pouco a pouco, as formas de seu corpo. Era bom sentí-lo assim, mesmo que fosse pura imaginação. Cecília olha o rosto de Frederico. Cenho severo de grossas sobrancelhas. Narinas grandes, abertas, que se inflavam sutilmente de tempos em tempos, como se buscassem inalar seus cheiros. Todos os cheiros de Cecília mulher. Era bom também se sentir ou supor mulher e desejada. E num só movimento o enlaçou e apertou muito forte nos braços e embriagou-se com seu cheiro e o beijou e fungou e arfou e suas mãos tentavam aprisionar os músculos daquelas costas, e depois pescoço, nuca, orelhas e seus dedos brincavam, aqui, ali para, depois, escorregarem pelos braços peludos, até as mãos que a seguravam firmes e, ao mesmo tempo, decifravam seu corpo numa leitura muda. Ah, aquelas mãos! Foi um longo, eterno, imenso beijo sem tempo. Mas só poetas e loucos podem falar impunemente das esferas vedadas à razão. Calo. E Cecília, embora detestasse a grosseria e os odores de Mulheres, o livro, não deixou de lembrar do velho Bukowski, como se lembrava sempre, a cada redescoberta de que, às vezes, um beijo pode ser muito melhor que uma trepada. - Ah, velho safado!

E, antes mesmo que Frederico pudesse se apoiar nas pernas - e ele gostava quando sentia que os membros não podiam sustentá-lo! - antes mesmo, Cecília escapuliu, correndo com surpreendente leveza. Frederico ainda ensaiou um gesto mas, fosse por deleite e torpor, fosse por justa avaliação de sua inutilidade, o gesto ficou apenas esboçado. E Frederico cedeu à moleza do corpo e da alma - foi só um sonho, que importa? Que desejo louco acalentei por um momento? Que quimeras se escondem em mim? Velho corpo gasto e capenga, saravá!

A serpente é a paixão! - deixou escapar Cecília, em voz alta, resumo de tanta confusão e caiu entre as almofadas grandes e fofas que lhe compunham o leito. Arfava ainda. A pele fria. Num bocejo enorme, fechou os olhos. As mãos ainda esboçaram um gesto para acariciar o próprio corpo e a cabeça repetia como eco - A serpente é a paixão... a serpente é a paixão... - Cecília dormiu. Quando abriu os olhos, as cores dos neons se alternavam no teto, numa dança repetida dos letreiros das boates. Na nesga de céu, uma estrela apenas. E Cecília, no lusco-fusco do despertar, misturava cacos de sonhos, desejos retidos, descobertas intuídas e a estrela sozinha e as cores no teto e o arrepio no corpo e a idéia na cuca - não, nada de paixão. Vade retro ofídio paradisíaco, que o fruto é e sempre será belo e apetitoso e o pecado está sempre aqui... não, a serpente, é óbvio, é a paixão. E só então, viu que dormira do jeito que estava. Com a roupa suada da desabalada corrida, com as sandálias até, embora estas fossem muito leves, de tiras finas de couro, algumas trançadas, que passavam entre os dedos dos pés. Cecília desatou o cinto e abriu a calça. Sentiu seu cheiro de sexo e de mulher e entregou-se como bicho às lembranças e estímulos daqueles odores e deixou que seus dedos, seu tato, sua pele, seus seios, seus pêlos, seu ventre, todo seu corpo se transformasse, aos poucos, em seu sexo e apagasse a estrela, na nesga de céu e, depois, a dança dos neons no teto do quarto e, por fim seu próprio corpo, metade despido, vencedor e vencido. Cecília dormiu.

continua

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