Carta de Cecília

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27/01/98



Caro cronista,

Não foi por simples acaso que li sua crônica do dia 22. Ela me foi indicada e levou-me a da véspera. Achei engraçado ver ali publicada uma história que é minha e não pode interessar a mais ninguém. Pensei: ele deveria ter me perguntado... aí, lembrei que você não sabe como me encontrar. Então, perdoei, embora, nem sempre, seja fácil perdoar.

Achei engraçado e triste, as coisas que você conta ali. Tudo aquilo me soou falso, se lhe interessa saber. Você diz que gostaria de ter notícias de mim. Duvido! No máximo, você pode estar curioso sobre aquela história, por causa do homem misterioso que um dia passou pela minha vida e desapareceu. Quem sabe está com angústia do desenlace, por não suportar uma história sem fim. Sem fim, não, com um fim rápido demais para padrões dos happy-ends de Hollywood.

Por que será, cronistaprendiz, que as pessoas não se conformam com isso, não aceitam com simplicidade um fim? Medo da morte, você diria? Não lhe parece que todo fim, mesmo quando se afirma que "viveram felizes para sempre", todo fim têm um sabor intrínseco de tristeza, pelo simples fato de ser um fim? O final de uma música, de um filme, de qualquer coisa. Minto, algumas coisas é até um alívio ver terminar. Certos telefonemas, algumas reuniões, mesmo determinados filmes. Acho que só se sente aquele sabor com o fim das coisas que nos dão prazer. Será?...

A gente tem mania de prolongar artificialmente aquilo que nos dá prazer, as coisas gostosas! Mas acho isso é ruim, é falso. Não se pode fingir que existe uma coisa que já acabou, não é, caro cronista? Não é esse desejo de não deixar terminar uma coisa, de manter artificialmente vivo algo que já não existe, que provoca tanto o sofrimento?

Seria melhor se aceitássemos com naturalidade os fins. É um treino para a morte. Não estou dizendo que é coisa fácil nem que eu consiga agir assim. Apenas, como penso que deveria ser. Vivemos longe da natureza. Um dia, um ministro disse que nunca tinha visto uma vaca! O contato com a natureza é, cada dia mais, através do canal de aventuras da televisão. Eventualmente, uma visita ao zoológico.

As crianças não têm mais terra para comer. Formigas para as picar. Não podem mais reformar a natureza como Emília fez, no Sítio do Pica-pau Amarelo, porque nunca viram vaca fazer cocô e nem o pé que dá abóbora. O que queria dizer, cronista, é que se estamos longe da vida, ficamos longe da morte também. Provavelmente o Jeca Tatu sabia largar as coisas com mais facilidade porque, quando menino, viu muito bicho e muita planta morrer.

Ah, as palavras, às vezes, chegam a ser irônicas: "sem terra" são todas essa crianças que moram em cubículos empilhados, gaveteiros de gente. Mas, perdoe, cronista, me entusiasmei e fugi completamente do que queria dizer, que minha história á banal, comum.

Milhares de pessoas já viveram encontros como aquele. Acontece. Com você nunca aconteceu? Na verdade é tão banal que virou letra de música. De muitas, mas lembro de uma, que retrata exatamente aquilo que lhe impressionou: "La Foule", cantada por Piaf, quando eu ainda nem tinha nascido. Como não sei se você compreende francês, me dei a liberdade de a traduzir para você. Note, é uma mulher quem conta a história, embora a letra seja de um homem: Michel Rivgauche.

"Revejo a cidade em festas e delírios / sufocando sob o sol e a alegria / e escuto na música os gritos, os risos / que explodem e ecoam ao meu redor / e perdida entre essa gente que me empurra / atordoada, desamparada, eu me entrego / quando de repente, eu me viro, ele recua, / e a turba acaba por me jogar entre seus braços.../"

"Conduzidos pela turba que nos arrasta / nos carrega / esmagados, no outro / nós formamos um só corpo / e o fluxo sem esforço / nos empurra, enlaçados um no outro / e nos deixa, os dois, / exaltados, atordoados e felizes. / Carregados pela turba que se enlaça / e que dança / uma louca farandole / nossas mãos ficam "soldadas" / e, às vezes, levantados / nossos corpos enlaçados voam / e tornam a cair, os dois / exaltados, atordoados e felizes..."

"E a alegria que confessa em seu sorriso / me traspassa e se reflete dentro em mim / mas de repente eu dou um grito entre os risos / quando a turba acaba por o arrancar de meus braços..."

"Conduzidos pela turba que nos arrasta / nos carrega / nos afasta um do outro / eu luto e eu me debato / mas o som de sua voz / se sufoca no rir dos outros / e eu grito de dor e de fúria e de raiva / e eu choro... / Carregados pela turba que se enlaça / e que dança / uma louca farandole / eu sou levada para bem longe / e crispo meus punhos maldizendo a multidão que me rouba / o homem que ela me havia dado e que nunca mais encontrei..."

Bem, tomei seu tempo mais do que devia. La Foule, você sabe, é "A multidão" ou "A turba", como eu preferi. Traduzir é tarefa quase impossível: tradutor, traidor e até ao traduzir isso está-se traindo o original: traduttore, traditore. Sinceramente, cronista, espero que você compreenda o francês e substitua esta tradução pela Piaf. Farandole, é óbvio, é um tipo de dança provençal, uma espécie de cordão... Se você quiser a letra original da canção, pode pegá-la nesta cópia do original que também sumiu do endereço indicado: http://pantheon.cis.yale.edu/~bodoin/eplyr003.html

atenciosamente,

Cecília

PS: Nunca mais encontrei Frederico. Já ia me censurar, mas pergunto: você tem notícias dele?

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