Idiota

26/01/98



Bom dia, idiota!

Lógico que não! Acha que iria lhe chamar de idiota assim, logo na primeira linha? Ah, querida Sabrina, você bem sabe que gosto cada vez mais desses cabelos de ouro e desses olhos de aquarela... Claro que o bom dia não foi pra você, nem para as leitoras fiéis e tampouco para alguma eventual infiel... Não, dona Sabrina, como leitora, é óbvio eu nunca me atreveria a julgar a fidelidade de uma mulher!

Aquele bom dia foi para mim mesmo, afinal. Uma espécie de resposta ao que ouvi, pois o rádio se ligou por gosto próprio ou artes de alguma bruxaria das tais tecnologias embutidas num chip ou algo assim... Explico: me sinto idiota, não por ter um eletrodoméstico (aliás, ando doido para conhecer os eletroselvagens!) que decide me acordar e faz a algazarra que bem entende. Tenho certeza de minha idiotice é ao ouvir os anúncios, os reclames - que já não se chamam assim -, as propagandas de um modo geral e, algumas, em particular, que sempre tocam no rádio, sejam ou não pra te acordar. Diante de um anúncio, no rádio , jornal, televisão, você, não se sente assim? Não, dona Sabrina, é mesmo? Até gosta dos comerciais? E você, caríssimo leitor? Sabia que existe um canal na tevê que só passa anúncio? Três vivas à biodiversidade!

Ora, o conto-do-vigário só vinga se a vítima não tiver lá, também, com a melhor das intenções... Pode ser a velhinha de Taquaritinga, meio surda e indefesa, mas se ela topa comprar o "bilhete premiado" por cem pratas, só para o pobre moço vai perder o ônibus, ela não queria apenas "ajudar" o "pobre vigarista"...

Pois bem, a maior parte dos anúncios me soam exatamente como contos-do-vigário. Para acreditar no que dizem, das duas uma: estou sendo tão desonesto quanto os que anunciam ou sou um completo idiota! Bom dia! Por exemplo: lhe ocorre lembrar dos complicadíssimos balanços que os bancos são obrigados a publicar todos os anos, com números miúdos enchendo uma ou duas páginas de jornal, para que muito poucos os possam entender, quando você ouve, ou lê, um reclame dizendo que poderá ter grandes lucros se entregar seu dinheiro ao banco tal? E comparar os imensos lucros prometidos com os deles, que aqueles poucos que entendem os balanços, acabam por divulgar? E visualizar outros "balanços", que os bancos jamais chegam a publicar?

Ah, os marqueteiros, às vezes, têm tiradas brilhantes, é verdade, que são um elogio à inteligência. Algumas frases, algumas imagens, uma ou outra sacada marcam. Mas o próprio ofício implica em mentir e enganar... Não, nada disso, não falo de nada que possa ser controlado lá pelo órgão de ética deles, não! Não me preocupa se as coisas têm ou não os atributos apregoados. Pode ser que o sabão lave mesmo mais branco ou o carro tenha em seu haras os cavalos declarados. Isso pouco importa. São duas outras as mentiras cruciais: primeiro, e mais óbvio, são as mentiras com o que não está explícito, tudo que fica apenas insinuado. Ninguém vende cigarros louvando suas qualidades "medicinais", mas se fosse verdade que o uso do tabaco propiciasse um estado psicológico como aqueles mostrados nos anúncios, certamente seria saudável fumar, pois corpo e espírito caminham de mãos dadas... É essa a mentira oculta, que ninguém pode apontar...

Ninguém vende cerveja dizendo que o alcoolismo é o estado de degradação final do ser humano - e é - mas veja como são jovens, alegres, bonitos, saltitantes e saudáveis os "tomadores" de cerveja da tevê. Mistura-se a tudo um pouco de sexo, na certeza de que essa é a grande mola ou a auto-estrada privilegiada da fuga de si mesmo. Seja para vender cachaça ou simples clipes para escritório, se possível, põe-se o tempero de mulher e de sexo... (Ano passado, falei de uma curiosa caixa de clipes... Na ocasião não tinha como mostrá-la, agora já é possível ver. )

A outra mentira é convencer que você precisa daquilo que é ele quem precisa vender. Na maioria das vezes, é óbvio, você não precisa. E aí está a grande "arte": uma lavagem cerebral para que "aquilo" pareça imprescindível. Na minha infância existia o sabão, o sabonete e as pessoas eram cheirosas e saudáveis! Todo o resto foi inventado depois. A propaganda do primeiro shampoo perguntava: "você lava as mãos com shampoo?" para responder, já com o jingle: "Claro que não, shampoo é para lavar os cabelos..." Era preciso convencer às pessoas que sabonete não servia para lavar os cabelos, como elas tinham feito a vida inteira até então, e os pais dela também, e os avós também e assim por diante... Convenceram! Basta olhar a prateleira do supermercado, ou da farmácia, para se convencer do poder de persuasão dos marqueteiros... Além do shampoo, que ainda nem chegou ao dicionário, há uma infinidade de outros potes delgados com líquidos coloridos, para finalidades que nem consigo compreender. Garanto: um sabonete basta. Conheci um rapaz ainda mais radical: nem sabonete usava e, asseguro, não cheirava mal. Em certos banheiros femininos fico perplexo, pois me parece haver maior diversidade de potes do que alguns supermercados...


O bom é que tem um botão, no rádio, que desliga o rádio.



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