auto-retrato [1988] 

Céu de chumbo

14/05/12

O título, antes de encimar uma possibilidade de crônica, evocou-me Asterix, o herói de quadrinhos onde antigos gauleses temiam apenas os céus lhes desabarem sobre as cabeças. O céu do domingo, do lado de cá do fim do mundo, enovelou-se em cinzentos e ameaças de tempestade, com um fino horizonte iluminado sob a cúpula tenebrosa. Ainda assim a vida pululava embaixo da abóbada ameaçadora.

Sobre um estreita faixa de mata, deixada em grota profunda por loteamento milionário e devastador, dois papagaios passeavam aos gritos, pousando ora num galho, ora em outro dos que se destacavam da massa verde compacta. Aves belíssimas. Completavam-lhes o verde característico manchas amareladas, nos lados da cabeça e tons alaranjados ou avermelhados sob as asas, de rara aparição. Quando os barulhos humanos diminuíam, se percebia um diálogo dois dois, bem próximos e a perambular nos restos sem folhas de uma árvore, com outros, maios distantes, avistados adiante, depois de caminhar um pouco.

Na encosta oposta, vista do alto do espigão divisor de águas, que despencava à esquerda da direção de nossa caminhada pela estrada cumeeira, dois gaviões sobrevoavam algumas copas em voos rasantes, à procura de alimento em ninhos alheios. O ímpeto de julgar e condenar aquelas aves não pode, ali, tomar as rédeas da razão. De uma forma ou de outra, toda vida animal preda e é presa.

Pela manhã, também saguis corriam de uma árvore a outra pelos fios esticados entre os postes. O alarido de pássaros testemunhava o medo de perderem filhotes ou ovos. Nos quadrinhos de Asterix se matam javalis aos montes, para saciar a turba e, em particular, Obelix, o gordo forte que caíra, bebê, na poção mágica...

O céu escuro dominical ameaçava desabar a qualquer momento sobre nossas cabeças. Hoje, liquefez-se em chuvas e garoas.

Mon, May 14, 2012 1:14 pm

Que lindo. Tá muito bem escrito.

Bjs

      sem assinatura

Merci. No entanto, você sabe: importa muito mais do que como está escrito o que se diz...

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