Concílio de Bruxos e Bruxas

14/09/97

Jeová - "por alcunha antiga o padre eterno" - é absolutamente irresistível: ao pronunciar uma palavra, as outras vêm na enxurrada, sem pensar. Toca um tipo de gramophone no cérebro - acontece quando o poeta é bom, o ritmo dos versos sedutor e não se vexa o leitor de repeti-los alto e bom som. Agora, Junqueiro - obrigado -, volto ao padre eterno.

Supunha eu que Jeová, uma vez feito o universo e por ser também onisciente, logo, sabedor da eternidade que o ameaçava para todo sempre, com o tédio de nada mais haver por se fazer, pensou: - É preciso ser-se Deus para suportar uma eternidade do mais completo ócio - e, em seguida, teve a idéia brilhante de criar o sábado. Sábado, o sétimo dia, o do sabá, palavra ambígua em nosso idioma, pois além de descanso religioso é, também, conciliábulo de bruxos e bruxas, sob a presidência do Diabo. Se não foram os próprios padres que inventaram a balela, talvez tenham, por isso, transformado o sábado em domingo, magro, que o gordo é de carnaval e tem mais cara de sábado.

Criou o sábado, pois, o Padre Eterno, "Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno", no dizer de Guerra Junqueiro, para que os filhos do primeiro casal - a esta altura ainda hóspedes do Paraíso e inconscientes da própria nudez - todos os filhos e filhas, que somos nós, nossos pais, filhos, netos e avós, pudéssemos saborear, de leve, as agruras e delícias que só a um Deus é dado provar. Assim pensou, assim fez e disse lá com sua touca de dormir, pois não estou seguro de haver botões nas vestes do Padre Eterno de Junqueiro, mas touca, sim, touca há. Eles terão agora um dia por semana para se depararem cada qual consigo mesmo, como para mim, há toda a eternidade. E, pelo que conta o Guerra, desse dia em diante, não fez mais nada...

E você, leitora predileta, tem esbarrado em você mesma, nas esquinas desse domingo, que já foi sábado, quando as bruxas ainda podiam ter seus concílios presididos por Satanás? Temos feito de nosso ócio, espelho das inquietações de Deus? Primeiro foram os sacerdotes, certamente. Tomaram para si o dia de Deus - domingo é isso: dominus dies, o dia do senhor - depois veio a turma do panem et circenses...

É fácil notar quantas providências se tomam para evitar o tão temido encontro. Os jornais, magrinhos semana à fora, resolvem no domingo competir, em volume de papel, com a Enciclopédia Britânica. Sobre a programação de domingo das tevês, o melhor é calar. A tal indústria do entretenimento funciona a todo vapor - embora as máquinas a vapor tenham se aposentado há quase um século. Restaurantes têm mais zelos, nos domingos, com o arroz do que com freguês...

Tudo indica que Lúcifer, ou algum outro diabo, ao perceber a estratégia de Jeová, tomou lá suas medidas, cautelares, com a assessoria dos melhores marqueteiros e o indispensável apoio cultural dos industriais do entretenimento. Pequenos vícios, murmuraram, pequenos vícios. Os menores são os melhores para os dias de sabá, garantia a Assessoria Especial de Estratégia Psicossocial, mesmo que, no futuro, façam do sábado um domingo. A cama, sintetizou outro. A cama precisa ser logo inventada, pois poderá vir a ter papel relevante, no driblar os desígnios divinos.

E aqui estamos, leitor e leitora queridos, com nosso pequenino vício, em pleno domingão, fugindo, como sempre, desse encontro marcado pelo Padre Eterno do poeta. Acendo mais um cigarro antes de dizer: vício, é vício. Rodamos em círculos, como bicho enjaulado. Veja, ilustre passageira a bela frase estrangeira... Não, a frase não é estrangeira. Apenas, a língua o é. Veja, então, este outro vício, dizer-se sempre e de novo, o mesmo, até mesmo quando é apenas pra inglês ver, diz-se o que aqui repito, no frontispício desse sítio


A leitora mais arguta já viu que está cheio de plágio aqui: o delicioso "ser-se Deus", devo a Saramago, usado e abusado no seu "Evangelho". [volta]



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