Da saliva de Jeová

13/04/16

Por que você nunca fala do mar?, ela perguntou.

Veio a vontade de responder "por não ser eu Caymmi nem Guerra Junqueiro", mas calei, apesar de me voltarem à lembrança os versos aprendidos na adolescência e nunca esquecidos do poeta português: No começo de "A morte de D. João", ao se dizer "... mudo e só na rocha de granito. / Por sobre a minha fronte a sombra do infinito, / Em volta a solidão, e o mar junto a meus pés", prepara o leitor para, algumas quadras adiante, o ouvir cantar o mar como poucos o fizeram:

E o mar, o vasto mar profundo e soluçante
Vendo surgir da lua o pálido fulgor,
Arqueia enormemente o dorso triunfante,
Como um leão raivoso em convulsões d'amor.

Arqueia o dorso enorme, eleva-se às montanhas,
Tomba sobre si mesmo em rude cataclismo,
Arranca mil trovões das rábidas entranhas,
Levanta-se outra vez, cai outra vez no abismo.

Volta-me o sentimento da infinitude dos oceanos com o ritmo e a perfeição destes versos e ilustra a resposta muda àquela pergunta. Talvez não tenha convivido com o mar o bastante para cantá-lo, talvez o conheça muito pouco para me arriscar a falar de suas imensidão e profundezas.

Um outro leitor imaginário questionaria: "quem fez aquela pergunta?", e, como um nó a mais na rede imensurável do faz de conta, no mar infinito de personagens, onde coabitam Macbeth e moça da novela das nove, teria de contar: é apenas outra personagem, inexistente como você.

O mar quebra noite e dia na areia da praia a repetir a velha cantilena, ora com vozeirão raivoso, ora em murmúrios e sussurros de calmarias. Porém, para cantá-lo é preciso o ter entranhado em si e só um convívio longo e íntimo propicia tal amálgama.

Assim explicaria à leitora imaginada o meu silêncio quanto a "saliva de Jeová", mencionada pelo mesmo poeta em outra quadra, a tal que "ao cair na Terra fez o mar".

Wed, 13 Apr 2016 10:18:18 -0300

ah, que nojo, saliva! ra ra ra ra. Mas a crônica é bela.
Falta a interrogação na pergunta da primeira frase. E Junqueiro ou Junqueira, como seu amigo médico?
QUando eu era bem pequena e você me levava pra passear ou me buscava na escola da praia Vermelha, você me disse pra observar como a natureza nunca se cansa, como as ondas do mar repetidamente batendo na areia, etc. (não me lembro dos outros exemplois que vc deu) e que a gente olhando pra isso quando está triste poderia se sentir melhor. Falei pro papai, ele achou que a ideia era minha (e não desmenti) e ficou encantado.
Quando você morava no RIo, falava do mar, portanto. E foi roubado por mim.

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Sim, esqueci o ponto de interrogação.
Obrigado por avisar.
O poeta é Abílio Manuel Guerra Junqueiro, mesmo.
O Junqueirinha é Junqueira.
Agrada-me a história que encantou papai.
As idéias não tem dono, circulam no ar, no éter, no inconsciente, sei lá onde... é só pegar e usar. A humanidade somos todos nós.


Wed, 13 Apr 2016 13:10:34 -0300

eu sugiro uma leitura complementar espelhadora de marimarcas de Saint JohnPerse
uma obra prima do frances equatorial na traducao magnifica de Bruno Palma a quem tive o prazer de conhecer.
mais uma vez parabens esta cronica e muito boa

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Obrigado, pelo elogio e pela sugestão.
Vou procurar o livro. Nunca li Saint JohnPerse, em verdade, é a primeira vez que ouço falar dele.


Wed, 13 Apr 2016 19:42:34 -0300

E agora você vai inventar uma história sem nadinha disso...
Desta vez... uma primeira vez...
Pode ser?
Ou, como dizia Caetano...
"Outras palavras"....
Que tal?

kkkkkkkkkk!!!

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Vou tentar.
Tudo que posso dizer é vou tentar.
Não posso saber se serei capaz.
Vamos ver, ambos.
Que tal? Ótimo, gostei do desafio.
Tentaremos achar outras palavras, embora o que é seja o importante.


Thu, 14 Apr 2016 09:37:40 -0300

Lindo, obrigada!
E a saliva de Jeová é demais!
Bjs
Ana

Obrigado.
Quanto à saliva, agradeça a Guerra Junqueiro.

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