Nascimento e morte do desejo

30/08/97

Disse que queria falar do desejo. Pois que seja hoje, porque hoje é sábado - e só as quatro palavrinhas, já são preito ao Poeta. Desejo, não sei se consigo. Há alguns anos, pude ver com nitidez o desejo surgir e desaparecer em mim.

Por que não sou objetivo? Por que não falo com palavras simples, sem rodear e rodear a chama que atrai e mata o inseto? As voltas que dou te deixam tonta, dona Sabrina, de rumo perdido?

Vi, numa tarde de luz dourada, o desejo nascer e morrer, em mim. E, morto o desejo, não ficaram marcas ou cinzas, ao contrário, me senti leve. A leveza de compreender que, sem nosso sopro de vida, o desejo tal qual a pluma do poeta de hoje decidiu : "voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar..." E o vento, podemos ou não soprar. Como Deus, como deuses.

Quero dizer que o desejo em si não tem nada de mal. É como ter sede - como, não, sede é desejo de água - ou vontade de urinar. Satisfeito, desaparece. Mas há outros, que é impossível contentar. No entanto, deveriam desaparecer também, ao se compreender que são impossíveis. A compreensão da impossibilidade seria uma forma de saciar. Voltemos à cena, era sábado, eu acho.

Um bar na luz mágica de uma primavera precoce. Dois namorados chegaram e sentaram na outra mesa. Ela era jovem e linda. Se fosse outro, diria: - repito, era jovem e linda. Pois aí está dito tudo. Sem preconceito, deixei voarem os devaneios. Ela, envolvida demais, não percebia o jeito e insistência de meu olhar. Eu viajava. Deixei aos ventos e às águas o rumo, sem saber de porto ou destino. E as espumas daquela viagem deixaram um rastro no guardanapo. Meros vestígios do que já não é. Ficou assim:

Seria capaz de muita loucura por um rosto assim! É mesmo? Verdade? Quais? Sem sequer saber o que loucura seja, Sem jamais saber do que é capaz Grita inconseqüente esse rapaz: faria loucuras, algumas ao menos, movido apenas por um rosto de mulher.

Adolescente amamentado pelo hino alucinado da Piaf, que iria até o fim do mundo, roubaria ao firmamento, a Lua, ou outra coisa qualquer "si tu me le demandais..." e que se esconde, ainda, nesta cabeça tonta, neste peito velho, nesta carne nua...

Mas, tudo pára diante desses cachos, cachos negros escorridos; diante desses olhos negros, grandes, fundos que fingem tristeza enquanto sorriem. Tudo pára na inocência há muito intuída, inocência perdida, escondida, talvez, em recôndito mistério: em mim? Em quem?... E a boca marcada, bem desenhada, marca inequívoca do apelo da Vida em broto de gente a desabrochar. Negras sobrancelhas árabes, baixas, traço decidido de mestre pincelada segura de um gesto só... O sorriso, tímido: cheio de dentes, dentes pequenos. O pescoço longo e, da orelha escondida à ponta do queixo, a curva perfeita. Você, que sequer me viu, Você, que nem nome tem, Você foi, por um momento, A princesa sonhada, materializada ali, pouco a pouco, desapareceu. E olhei de novo e vi apenas a mulher bela, sim, como outra qualquer.

No fundo do que não digo, há a constatação de que só depende de nós alimentar, ou não, os monstros que nos assombram. Maravilhados diante da vida que percebemos em nós mesmos, surpresos de ver que sentimos, de sentir que vemos, pasmados com um corpo que existe, à revelia de toda razão. É tão raro deixar às águas, apenas rolar. Com a tesoura do Verbo - o tal que era, no princípio - começamos a podar...

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