à guisa de ilustação

Difícil

Pode-se passar toda uma vida no limiar da percepção. Agir segundo impulsos obscuros, que emergem de entranhas mal sabidas. Detestar essa maneira de ser e se propor outra forma de agir, apenas para constatar que algo mais forte decide por nós e vence um frágil querer. Pode-se passar a vida inteira quase sem perceber uma luta tão violenta, apesar de ser-se o campo de batalha e testemunha única, privilegiada. Não com os olhos de ver, mas com os outros, de compreender...

Para a humanidade, a vida que se perde assim, se nos afigura menor. Uma fração tão insignificante, que os matemáticos, logo a diriam um delta xis. Para o indivíduo é tudo, é a sua vida, a única que tem. No entanto, se olharmos de novo, a perspectiva de todos os homens, de todos os tempos - a humanidade - pode se delinear com outras cores...

Um cientista social - não, dona Sabrina, não se trata exatamente de um cara que fica num laboratório cheio de retortas e tubos de ensaio destilando frações da sociedade... ou seria? - de qualquer modo, o sociólogo se apressaria a explicar que é tudo uma questão de estatística. Diria que se o fenômeno - eles gostam de chamar toda essa desgraça que pode se abater sobre um ser humano apenas de "fenômeno" - se restringir a uns poucos, até uns tanto porcento - certamente saberiam quanto - a humanidade mal se daria conta e nada sofreria, mas se o "fenômeno" se generalizar... e por aí seguiriam com teorias e medições.

Deixando de lado todo blablablá inútil, vê-se que a coisa é muito, muito antiga e fácil de enunciar: conhece-te a ti mesmo. O difícil, é conhecer. Difícil, porque não se trata de conhecimento que pode se "adquirido", nem no supermercado da esquina nem em qualquer escola ou universidade, para juntar aos "bens" que ostentamos como patrimônio. É preciso conquistar cada vez, sempre, e nunca se pode meter na bolsa ou no bolso. Difícil, porque um desafio perene, sempre renovado, sempre diferente, que não pode ser enfrentado com nenhum tipo de experiência.

Difícil, porque exige dedicação integral e não admite "vacilo", como diriam os jovens. Sem esforço, sem desejo de recompensa, sem "fé" em nenhum santo, de pau oco ou madeira de lei, sem qualquer regra ou senda que tenha sido apontada por guru, por mais venerável ou privilegiado que possa parecer... Difícil!

Desvendar o resto da humanidade, que existe adormecida em cada um de nós. Deixar aflorar toda miséria e todo horror que dorme nas profundezas que nem suspeitamos de nosso ser. Despir a máscara de bom moço, da mocinha virtuosa, de todas as personagens que nos enchem de orgulho e com as quais desfilamos, para encontrarmos algum prazer em sermos pessoas tão "legais", bondosas, justas, sabidas, ricas de conhecimentos, espertas e sei lá que mais.

Percebermos no pequeno impulso, no desejo inconfessado, no gesto contido, no fundo de nós mesmos a humanidade inteira com tudo que tem de maravilhoso e de monstruoso também!

Vermos que dorme em nós, ainda que tênue, o transgressor. Todo tipo de transgressor. O ladrão de um centavo e o ladrão de bilhões. O que não consegue evitar um olhar ambíguo à mulher do amigo e o estuprador terrível. O assassino de baratas e outros insetos e o assassino frio, que mata outras pessoas por inveja, ódio ou prazer. A pequena sedutora "inofensiva" e a mais decaída e promíscua prostituta... Todos!

É difícil, muito difícil. Requer atenção o tempo todo. Atenção no presente, a nós mesmos, às coisas que nos cercam e com as quais nos relacionamos, aos sinais "incontroláveis" que brotam de nós... É difícil, muito difícil. Por isso, é possível passar toda uma vida no limiar da percepção...


Composto no CareWare Arachnophilia 1.5 - Copyright 1996-1997, Paul Lutus.


Publicada em 30 de setembro de 1998

 

 

|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|

129