Domingo na praça

06/04/98



Um telefonema avisa que vai ter concerto na praça. São os desencontros das melhores intenções: na cidade gigantesca, que caminha para os vinte milhões de moradores, umas vinte pessoas, pouco mais, param diante dos três artistas contratados pela prefeitura. A cantora avisa que é um projeto tal e qual, promovido assim e assado. Aquela explicação talvez faça parte de seu contrato...

É domingo e um frio de inverno transtorna o outono. Um no pandeiro, outro no violão e a cantora, com microfone em punho, a cara e a coragem para enfrentar a platéia desconfiada, que só saiu de casa, com certeza, pra tirar as crianças das gavetas. A praça é cercada de prédios por todos os lados... Sempre com o microfone, ela solta a voz e traz músicas de todos os tempos. Um menino estrábico, com óculos pesados, sobe no palco improvisado e dança. Procura imitar as batidas do pé do ritmista. Outras crianças brincam por perto, enquanto os pais tentam entender a surpresa da música ali.

Surge um homem magro, barbudo, que veste uma calça listrada muito larga, com uma das pernas enrolada até o meio da canela e várias camisas, vestidas uma por cima da outra. Calça tênis sem meias e tem um cigarro guardado em cada pé, entre os cadarços do calçado. Traz uma espécie de turbante na cabeça e uma grande sacola de tecido rosa, nas mãos. Parece dar especial importância a um caderno de jornal, cuidadosamente dobrado... Ele pára e começa a dançar. Gesticula muito e, visivelmente, sabe que está roubando a cena, como se costuma dizer no meio de teatro e televisão... A calça está um pouco suja, mas as camisas e demais peças, surpreendentemente limpas, para um morador de rua, como ele aparenta ser. Na mão esquerda calça uma luva de couro azul com proteções de borracha. Parece uma luva de goleiro, calçada ao contrário, com a parte aderente para o dorso, em vez da palma da mão (seria da mão direita).

De repente, o homem, se atrapalha com as coisas que traz e traja. Tira e recoloca, cuidadosamente a saia, transformada no imponente turbante, em sua cabeça. Dobra, com especial cuidado, o jornal: abre todo o caderno, e volta a dobrá-lo, de forma que as folhas que estavam no centro virem capa. Depois segue um rito de dobraduras até chegar a uma determinada tira... Larga a tira de papel dobrado para desatar o nó de um pano. Parece difícil, com aquela luva, mas acaba conseguindo mesmo assim. Volta a pegar o jornal, que se desdobrou ao cair no chão, corrige as dobras e segue, sempre com a sacola.

Uma menina brinca com um galho roliço. O galho cai de sua mão e rola pela rampa abaixo... O homem corre, pára o galho fujão com o pé, pega o brinquedo da menina e o traz de volta para ela. A criança olha o aspecto do "salvador" de seu brinquedo e rejeita pegá-lo de sua mão... Ele dá de ombros e procura um local próximo, para deixar o galho. Testa, primeiro, uma forquilha e, depois, opta por outro, mais baixo, melhor para a menina eventualmente pegar... Deixa o galho lá.

Vem uma criança pequena e estende espontaneamente a mão para o homem. Ele não lhe dá a menor atenção... Logo atrás vem a senhora que está com a criança e a recrimina: "... depois, ele põe você no saco, e, aí, eu quero ver..."

Chegam dois funcionários da prefeitura com coletes que identificam suas funções. Talvez estejam ali para conferir se o show segue o combinado...

A cantora pára de cantar e pega um instrumento parecido com um violino, só que bem maior. Explica que é uma viola, que se toca com arco. Diz que está aprendendo... e faz todos emudecerem diante do Trenzinho Caipira, de Villa Lobos! Depois, traz pedaços da caatinga para um frio dos pampas.

O homem vai falar com o músico que toca violão. Só dá para ouvir a resposta do violonista: "Agora, não. Depois." O homem volta e começa a discutir com um dos funcionários. Nisso, a cantora largou a viola e voltou a plenos pulmões. Não dá para ouvir o que os dois discutem. O homem pega suas coisas e, quando passa por perto, ainda resmunga: "Quem sabe de mim sou eu. Só eu é que sei de mim." Afasta-se, bastante irritado...

Retorna, pouco tempo depois, pelo outro lado. Larga no chão suas coisas e volta a dançar. Parece ter ainda mais consciência de que virou o centro das atenções. Mas muitas pessoas já se foram. As árvores, em volta, são monumentais e frondosas. Tornam o dia cinzento ainda mais sombrio. A cantora apresenta os créditos e anuncia a última canção. Ao final, alguém grita "bis" e uma outra voz ecoa tímida: "bis", mas está acabado. Rapidamente, instrumentos e fios começam a ser desmontados...

O homem, agora, conversa com os funcionários. As poucas pessoas, que ainda estão por ali, se aproximam. Uma senhora se diz muito comovida. A cantora indica as próximas apresentações, em outras praças da cidade. Por uma brecha entre tantas nuvens o sol muda o cenário e aquece um pouco corpos e corações...



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