Esfinge



3/11/97



A Esfinge ri seu riso de pedra. No mar de areia sonhado, nas areias que dão corpo e forma ao vento a gargalhada muda da Esfinge desafia e corta, sibila e zomba. E do sonho antigo os fantasmas surgem ou , nem precisa - basta a ameaça de que possam surgir! A pele sente o sopro morno de areias quentes impregnado de velhas maresias. Consciência intuída e não sabida de algo apenas pressentido, que jamais se vai desvendar... O olhar inerte vê o anjo inclemente com a espada certeira sobre Laodicéia: vômito repugnante da virtude mediana, da justiça insípida de partes iguais. O quadro torto na parede é justo para os olhos que o olham de esguelha, tortos também.

Vai a Primavera, em meio, rumo ao Verão! Dias quentes, às vezes, os mais quentes do ano, se alternam com as ondas de frio que conseguem ainda chegar, ou penetrar, no dizer de meteorologistas. Os insetos pululam como bolhas d'água em ebulição. Os chatos, que querem nosso sangue ou alimento e os outros, que aprendemos a admirar. De dia e de noite cantam cigarras e grilos em grande alarido. As flores, que precisam e dependem dos insetos, se arreganham em todas as cores. O verde resiste ainda, com o viço de folhas já não tão jovens, mas tintas mais verdes pela luz menos oblíqua do Sol. A passarada faz ninhos e barulho também. Há céus mais azuis, capazes de maior melancolia. A Primavera adolesce e quer virar Verão!

O homens se preparam para um verão que se anuncia sem perceber que é hoje e já o verão. Sonha o Homem com o símbolo, importado ou herdado e mal adaptado do solstício de inverno lá! O anúncio oficial, as proclamas, a declaração: hoje, começa o verão. E, como qualquer nascimento anuncia um corpo que principia a morrer, o começo do verão marca seu ápice e o principio de seu declínio também... A próxima noite já será mais longa, muito pouco, quase nem dá pra ver, porém, maior, como mais longas serão, dali em diante, todas as noites, uma após outra até o ápice oposto, nosso solstício de inverno, verão para os gringos, lá. Doces leitoras de pele macia, o verão é já! Correi para vossos barcos e mares, estufai velas, desfraldai bandeiras, pois repete a velhíssima canção: "e o mar apaga sobre a areia / os passos dos amantes desunidos..."

A tempestade de verão derruba dez torres de transmissão. Faltará luz. E aqui diz-se luz, mas é eletricidade o que vai faltar. Luz, aquela que nos traria, claras as respostas à Esfinge. Dessa, há muito falta e, cegos, tateamos e nos deleitamos com os mil filmes de nossos pobres festivais. Aprendo que cada torre tem 43 metros, mas os ventos têm mais, têm 130 quilômetros por hora. Ora, dona Sabrina, não se pode somar laranjas com bananas quando se quer saber quantas bananas dá, falo da Esfinge e seus enigmas, amiga, vale qualquer vendaval, antes da luz que não o é terminar. E a orla dos tufões trouxe respingos por cá. O calor continua, úmido, tropical. Mas a passarada, cadê? Ah, o Sol e sua luz mágica reverberando nas areias de um deserto intuído, e os ventos moverão as dunas do que nunca foi. Corta todas as amarras e cada pássaro encontrará seu céu, cada barco seu oceano. Crava garras e dentes na esperança que se desfaz. Retém as areias que querem se dispersar. Verte a taça que mente na imagem invertida do que não se pode reter. Agora! - amanhã já é tarde demais.

A mentira da primavera no ventre que gera e parirá um verão! Veremos dias mais longos - agora! Amanhã é o fim do mundo e os dias encolherão e a noite engolirá os sons e a passarada vai migrar, como nossa alma, para o rincão recôndito onde é impossível escutar o hino repetir a diabólica parábola: se um dia, a vida te arrancar de mim... onde os dias continuarão a crescer no verão eterno da aves migratórias, onde enfim o mar dirá que há tanta água e tanto sal e engolirá com seu rumor o riso de pedra da Esfinge, momentos antes da abóbada ruir...

Sim, o mar não existe, é tudo mentira, pura alucinação, apenas mais um devaneio meu. Não existe o mar. Não existe a praia, não existe areia, nem sal, nem sol, nem as algas nem o lixo que o mar devolveu. Não existe a rede, nem a tarde acaba, nem o sol se põe... E é mentira a areia da praia, tudo mentira, tamanha mentira do tamanho do mar. Não, garota, o mar é ilusão, não existe e você, também não. Não existe você. Você? Quem é você? Cecília ? Júlia? Maria? Joana? Tereza? Cristina? Lucila? Marina? Renata? Helena? Sofia? Quem?... Você, você é apenas um sonho. Você é apenas eu.

 

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