Espanto

14/01/98


O verão segue úmido, abafado e quente. Os dias mais longos alimentam as plantas com mais luz. Elas se tornam exuberantes e ocupam novos espaços. Lutam em silêncio com outras, usando suas possibilidades de crescer e se alastrar. Sufocam-se e disputam cada raio de sol. O mato se fecha e é preciso abrir picadas com facão.

Cada um sonha que seria o rico diferente. Imagina que seria rico sem as mazelas que a riqueza traz. O rico bondoso e descuidado, generoso e mão aberta. Seria o rico capaz de usufruir de forma sábia, segundo lhe parece, suas posses. Supõe-se capaz de fazer o que não vê os outros ricos fazerem, o que, aliás, não significa que eles não façam, apenas que não estamos a par de tudo que um rico faz...

O que leva uma pessoa a acreditar que é única e especial, imune a ser uma humanidade milenar, que somos de fato? Sim, somos únicos, cada um, como cada folha o é, singela e única, no verde mar da floresta tropical. Somos únicos e somos também com a sabedoria e as mazelas que, durante milênios, a natureza incorporou as folhas que faz. Quem já sobrevoou durante horas oceano vegetal da Amazônia, cortado aqui e acolá pelo brilho de um rio, compreende melhor a aventura de cada folha, única, na busca de luz e ar. Depois, essa massa gigantesca se transforma em solo e alimento para as novas gerações... de folhas.

De vez em quando alguém me explica que, se fosse rico, não seria um rico como os ricos são... ou afirma que, finalmente, sente-se maduro para ficar rico, sem medo de ser feliz, misturando slogans e idéias... Me espanto com essas explicações. Me espanta que todos achem normal o desejo de ficar rico, de ter muito dinheiro e poder realizar milhares de sonhos, publicáveis ou não. Provando, assim, ser um indivíduo único, impar em sua forma de ver e de pensar e, ao mesmo tempo, apesar de toda essa idiossincrasia, me espanta ver como somos iguais! Tal qual as folhas e suas gerações.

Meu espanto é feito de vários espantos. Parece-me muito evidente que o poder modifica as pessoas. Tenho visto e confirmado isso em mim e em quem se pode ver com e sem o poder. Poder e dinheiro se confundem. Não existem separados e um implica no outro, necessariamente. Poder é dinheiro, e vice-versa. Se percebo essas coisas é preciso certa ingenuidade, ou má fé, para supor que poderia ser um rico diferente. O estigma do rico está em seu dinheiro, na posse de sua fortuna, de seus bens. O estigma do poderoso está no poder que detém. Nenhum dos dois pode escapar às mazelas de cada condição. A borboleta pode parecer, mas jamais será uma folha.

Meu espanto vem também de se encarar como natural querer ser rico, muito rico. Para muitas pessoas, para a maioria, talvez, parece uma coisa natural. Para mim, não. A simples idéia de ser rico me soa como um absurdo fundamental. Nem falo, é óbvio, do disparate de ser o homem mais rico do mundo ou um dos outros, que o seguem na lista cuidadosamente atualizada a cada ano e amplamente divulgada para espanto geral. No entanto, será que a lista provoca espanto ou inveja?

Fala-se de uma fortuna pessoal de 40 bilhões de dólares. Isso significa que, para ser consumida em 40 anos, sem acrescentar um único centavo, é preciso gastar mais de 31 dólares por segundo, em todos os segundos, religiosamente. Mas isso é apenas uma curiosidade numérica, uma espécie de tara atávica, minha... Meu espanto é maior diante da fúria com que se disputa cada centavo, por todos os lados, em todas as situações e, além do mais, acha-se natural essa fúria. Com o argumento que se vai ganhar dinheiro justifica-se tudo que não tem qualquer justificativa. Meu espanto cresce quando vejo a lei de Lavoisier corrigida para nossa sociedade: para os homens, tudo se compra, tudo se vende, só depende do preço e da forma de "pressionar"...

No início deste século, meu avô testava a honestidade de um comerciante pedindo um desconto. Quando o desconto era concedido, desistia da compra, saia da loja e ia procurar o que precisava em outro lugar. Antes de nos perdermos em devaneios de que tipo de rico poderíamos ser, deveríamos nos perguntar por que há pobres e ricos; e os muito pobres e os muito ricos e procurar saber se gostamos de uma sociedade estruturada assim. Antes de nos imaginarmos como mecenas e provedores de benesses e benfeitorias, poderíamos olhar o tamanho do bolo e a quantidade de convivas e serviçais...

Breve as folhas começarão a cair e o mato a ralear. Os galhos nus projetarão uma sombra mais longa, sob a luz oblíqua do outono...

 



|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|



91