Etologia

08/04/98



Não sei qual o sinal. Antes, pensava que fosse o barulho das chaves, mas seguro firme as chaves para que não haja qualquer ruído e, mesmo assim, o cão sabe que vou sair... Sua euforia, em tais ocasiões, além de impossível de descrever é difícil de controlar. Se eu fosse espontâneo como ele, deixaria que me derrubasse no chão e me lambesse inteiro, de nosso arroio chuí ao oiapoque da ponta do nariz. Meu ritmo, para ele, deve parecer o de um caramujo adormecido: vai e volta até o portão em pulos e pinotes e o rabo, sempre penso, é muito bem preso ao corpo...

Na rua, tenho notado, seu comportamento está totalmente condicionado. Pavlov poderia ter evitado, pelo menos, ter de conviver com cheiro dos sucos estomacais caninos, se dedicasse mais tempo a observar cachorros, gatos, papagaios ou quaisquer outros bichos. Transposto o portão, Fladu sai como uma flecha, reto para Diana, a jovem cadela, que mora numa casa vizinha. Hoje, no entanto, ela não estava em casa e ele percebeu isso antes mesmo de chegar ao portão da companheira. Percebeu e disparou para encontrá-la na outra esquina, uns 50 metros adiante. Mal começavam as abrutalhadas carícias que eles costumam trocar, quando Fladu percebeu que ela não estava só...

Um outro vira-lata, com traços óbvios de Labrador, fazia companhia a dama. Para minha surpresa, que sempre vi meu cão com medo ou apanhando dos outros cachorros da rua, ele voou sobre o vira-lata e a briga começou. Estou convencido de que só a proximidade dos humanos pode tornar perigosa uma briga de cachorros. Li, há algum tempo, um maravilhoso relato sobre os lobos e suas brigas. O autor, Konrad Lorenz, ganhou o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973, por ter criado uma nova ciência, a Etologia, juntamente com Karl von Frisch e Nikolas Tinbergen. No livro, ele conta que um lobo jamais mata outro. Explica que, depois de muita briga, um dos dois cede e, literalmente, se entrega: deita-se no chão e expõe o pescoço, ficando absolutamente vulnerável àquele que, um instante antes, tentava "matá-lo" com a poderosa mandíbula... Diante dessa atitude o adversário e vencedor deixa o cenário e vai embora.

Pois foi essa, exatamente, a cena que presenciei. O Fladu, um cachorro que, até outro dia, me parecia bastante covarde, foi pra cima do outro e, entre latidos e mordidas e pegadas e toda energia que explode numa luta dessas, eu só achava ótimo que não aparecesse ninguém, de nenhum lado, podendo, assim, os dois resolverem um assunto que nada tinha a ver comigo nem com nenhum outro bicho gente. E eles resolveram. Sou suspeito, bem o sei, mas conto o que testemunhei: vi Fladu dominar a situação; depois de um minuto ou dois, o outro deitou-se de costas - e lembrou-me o livro do Lorenz, cujo nome esqueço - com o pescoço ali, ostensivamente exposto, a dois dedos da bocarra, babando, que pouco antes o tinha atemorizado... Fladu olhou para longe, - e eu quase dizia pensativo! - e voltou para junto da dama... O outro, saiu aparentemente ileso.

Já vi muita briga de cachorro acabar mal. Hoje, estou certo que a interferência das pessoas é que desnorteia os cães. Não é fácil ficar emocionalmente neutro diante de dois cachorros que se pegam, principalmente se uma das pessoas envolvidas é o dono (ou dona) deles. Se mantivermos uma atitude neutra, de um "cientista", as brigas dos cães, no mínimo, nos poderiam ensinar muita coisa. Para começar, ensinar a observar sem participar - o que não é nada fácil. É mais ou menos tão difícil como assistir a um jogo de futebol sem torcer...

Entretanto o mais surpreendente veio depois. É preciso dizer que Diana e Fladu parecem irmãos, primos, namorados, esposos, amantes, amigos, tudo. Têm quase a mesma idade e se conhecem desde pequenos. Vivem juntos. Brincam, correm, se pegam e fazem outras coisas, sempre juntos. Ora, quando voltei, os dois vieram no trote me encontrar e seguiram comigo, na eterna farra deles, até em casa. Eu tinha comprado ração e eles já sabiam disso, é óbvio - os cães não dependem dos olhos, como nós. Ela, particularmente, se mostrou muito interessada pela sacola da ração...

Já em casa, resolvi pôr um pouco de ração lá à disposição dos dois, pois estava certo de poder considerá-los mais que amigos até. Ela parecia mesmo faminta e avançou na comida. No primeiro momento ele apenas olhou. Depois, aproximou-se como se fosse comer também e... nesse instante ficou furioso (seria por ter percebido que ela comia no prato dele?) e a atacou com muito mais ferocidade do que havia atacado o outro vira-lata! Foi feio. Não consegui ficar como espectador (tinha também a responsabilidade de uma cadela que não me pertencia, é claro) e tive que interferir... Ela fugiu ganindo, em desabalada carreira, diria o lugar comum...



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