Nota: Toda terça-feira você encontra aqui um folheto de uma história improvável. O primeiro foi publicado em 21 de janeiro. No índice das crônicas, é possível conferir passo a passo. O único e nebuloso plano que existe só está traçado na imponderável rede das sinapses. Na terça, três de fevereiro, falhou pelas mesmas razões mencionadas aqui, que tiraram a crônica "do ar" entre 16/2 e 30/3.


Sonhos de Frederico

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07/04/98



Frederico pegou o papel e leu em voz alta, enquanto andava de um lado pro outro, sem economizar ênfase e gestos.

"Não sei se gênio ou ingênua, tanto faz. Tua atitude absurda me curou. De um golpe, destruiu a fantasia de ti que havia em mim. Se foi calculado, pensado para este fim, então é obra de gênio. Se não, é de uma ingenuidade infantil, uma babaquice sem nome. Fugir..." e por aí ia, derramando adjetivos e misturando raiva e admiração.

Quando acabou, amassou o papel e o atirou longe. Merda! Preciso pôr um ponto final nisso. Agora fiquei maluco de vez. Por que estou escrevendo para uma pessoa que não sei onde mora, não sei sequer se está nesta cidade e nem mesmo se está viva? Pirei!

Voltou para a máquina, colocou outra folha imaculada, a ajustou cuidadosamente, como sempre fazia, deliciando-se com a virgindade do papel. Parou, acendeu um cigarro e ficou algum tempo perdido entre a fumaça, seus devaneios e aquela folha branca. Quando começava, vomitava veloz as letras, apesar de só usar alguns dedos para datilografar. O texto crescia rápido: "Não sei exatamente quando me veio a idéia. Só sei que veio, foi crescendo e tomou conta de mim. Se não vou escrever aquela carta - nunca! - por que não escrever um livro? É isso! Claro! Você não sabe se entender com as coisas, cara, com as pessoas de verdade, com o absurdo do dia-a-dia, com o aborrecimento de providenciar isso e aquilo, nunca entrou num açougue, cara! Você é uma espécie em extinção, refratária à luta pela sobrevivência, impermeável ao contato direto com tudo, com todos. Por que não pegar o atalho? As palavras! Idéias, sonhos, delírios, devaneios, ilusões - essa penumbra povoada de tantos fantasmas onde perambulo sonâmbulo e me sinto em casa, tão eu! Sim! É isso! Meu último trunfo, a cartada final. Não uma carta, um livro!"

Frederico estava cada vez mais entusiasmado. Lia cada trecho sem parar, nem de ler nem de andar, tropeçava nos móveis e pisava outros trechos, amassados e amontoados pelo chão: "Foi assim que, forte por um instante, senti meus pés decolarem do chão e flutuei sempre mais alto, acima da miséria da condição de Homem e, das nuvens, me pareceu possível compreender. E palavras tanto tempo retidas, fluíram em busca de uma ordem qualquer, descuidadas da lógica da razão, carregadas pelo absurdo da emoção, aliviando o porre homérico de você. Sim, Ana Cecília , porque eu precisava falar e tentei tanto e tanto quis falar com você..."

Estava assim possuído pela imagem de Ana Cecília, sim... era esse o nome, tinha certeza. No último momento ela repetira. Primeiro respondeu apenas Cecília. Depois, quando já começava sua fuga espetacular , repetiu: Ana Cecília! Estava assim possuído com tudo em ebulições e relâmpagos que a razão desconhece, quando o telefone chamou. Seu primeiro impulso foi deixar a máquina secretária atender. Poderia ouvir o recado, enquanto ia sendo gravado, e então decidir se deveria atender. No entanto, nem o próprio Frederico sabe dizer porque atendeu. Era trampo. A conversa foi cerimoniosa, rápida e objetiva:

- Amanhã às 11, então?... OK... Estarei aí... Sei, claro. Ao lado? Não tem erro. Até amanhã...

Ótimo - falava Frederico , agora, com seus botões, mesmo assim, às vezes falava alto, já que morava sozinho; às vezes, falava só em pensamento, que é o jeito mais comum que a gente tem de falar consigo, sinônimo, aqui, dos desgastados botões. Ótimo, - continuou - esse trampo vai me ajudar a não ficar maluco. Não tem cabimento ficar pensando numa mulher que só se viu uma única vez e da qual só se sabe o primeiro nome... bem... os dois primeiros, vá lá... E Frederico acabava achando graça em suas próprias maluquices. Deve ser coisas grande... vai me ocupar, e não só o tempo, mas principalmente a oficina do diabo em que minha cabeça se transformou... Ninguém pode viver dia e noite pensando numa coisa só. Sim, porque à noite, advinha o que sonho?

Talvez eu já estivesse morto. As imagens vinham de todos os lados, de todas as épocas e tomavam conta de mim sem pedir licença. Disputavam o palco de minha imaginação como grupos de atores perdidos, sem direção, sem poder lembrar direito o texto - velhos demais. No teatro de minha cabeça, todos estavam bêbados: o porteiro, o diretor, o contra-regra, o iluminador - todos!

Suspensa dos sonhos de Eliseu Visconti, a penumbra enche o teatro vazio. O primeiro spotlight acorda a orquestra num bocejo espichado. A rotina dos ritos repetidos reflete nos ventres de cobre dos tímpanos a reverberação de fantasmas desgarrados de outras épocas, intocáveis como bolhas de sabão.

O facho azul titubeia tateando a escuridão e materializa na amurada de pedra, batida de mar, a primeira aparição...

Frederico acordou bêbado de tanto sonhar. Arrancou da máquina o papel que amassou sem ler e o atirou longe...



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