Confessionário

4

31/03/98



Foi-se a tempestade tal como veio: repentina. Pouco depois, também o sol voltava do mesmo jeito que havia sumido... A luz inundou os vitrais da igreja onde Cecília se deixara ficar, atraída por lembranças da meninice...

Tolice, sentenciava, juíza e ré de si mesma, mas o burburinho do passado em suas entranhas era coisa real e presente... Outras cenas e outras pessoas se misturavam às imagens - seriam apenas palavras? - da menina pequena, num cenário que não existia mais, num tempo... - sim! o Tempo! mistério maior sempre a nos desafiar... e quando surgia o "sempre", nesta frase, Cecília sentia-se mais impotente ainda para lidar com o Tempo. Sempre?

Ah, aquele confessionário! Como olhá-lo sem trazer a imagem do confessionário de Oito e Meio, ou todas as tintas com que Fellini pintou a igreja católica? Cecília conhecia bem aquelas cores... Nunca esquecera sua primeira confissão. É claro que deveria ter sete anos, ou quase, pois essa era a idade de praxe para as crianças comerem pela primeira vez, o pão que representa o corpo de Jesus...

Apesar de todo o catecismo, de toda preparação, Cecília foi para o confessionário sem culpa - não se sentia uma pecadora. Agora, nas névoas de sua memória, calculava que todo o ritual e o ambiente de penumbra e silêncio da igreja seguramente teriam uma poderosa ação sobre as emoções de quem se confessa pela primeira vez...

Era forte a sensação de falar e escutar pelos buraquinhos que formavam um desenho, sem poder ver a cara do padre dentro do confessionário. Nas aulas, tinha aprendido que seria como se ela estivesse falando com Deus! Ainda nem tinha sete anos completos e já, uma audiência com o próprio Deus! Agora, Cecília media todas essas coisas. Em verdade, nunca parei para pensar nisso tudo - dizia a si mesma e continuava, num turbilhão de pensamentos, lembranças e sensações - é peculiar essa coisa em torno da confissão: até hoje, por dois milênios, é vedado às mulheres ouvir confissões... Por quê? No entanto, consta-se aqui: a imensa maioria das pessoas que vêm se confessar são mulheres... Curioso...

O padre fez as perguntas de praxe, seguindo mais ou menos a lista do catecismo ou a dos pecados capitais... Cecília menina respondia com naturalidade. Uma repreensão aqui, por ter dito a uma colega não ter mais dropes, quando ainda restava um, uma observação ali para não deixar de rezar até o fim as orações, antes de dormir ou uma explicação meio confusa sobre pai e mãe serem a imagem de Deus na Terra...

Assim foi até que o padre começou a fazer perguntas mais específicas. Queria saber se ela se tocava, se gostava, quantas vezes, por quanto tempo, etc. Cecília, então, lembrou-se de uma brincadeira que ela chamava de "buruti"... Era um segredo só dela e de seu amigo André. Os dois tinham inventado a brincadeira, já fazia muito tempo... Cecília mulher, não podia saber como a brincadeira começara, tampouco quem - ela ou André - tivera a idéia primeiro. Era simples: um dizia pro outro: Vamos brincar de buruti? E iam...

A brincadeira se resumia a mostrar, um para o outro, aquilo que é proibido mostrar. Satisfaziam, assim, uma curiosidade natural, que toda criança tem. Os índios, pensou Cecília mulher, jamais precisariam brincar de buruti...

Foi só isso que Cecília teve coragem de contar ao padre, ou para Deus. Nem passou por sua cabeça, apesar das aulas de catecismo, que Deus vê todas as coisas e está em todos os lugares - Deus sabe de tudo! Cecília mulher sorria da ingenuidade da Cecília menina... Sim, porque depois, a brincadeira de buruti se "aperfeiçoou" e, eventualmente, um fazia pipi para o outro olhar, mas isso ela não teve coragem de confessar. Ah, os quintais daquele tempo! Enormes e cheios de plantas, capazes de esconder crianças para essas descobertas fundamentais... Cecília mulher começou a contar cada fruta que dava em seu quintal: carambola, jambo, banana, cajá-manga, romã... Sim, tinha mais, muito mais...

O padre, que poderia ser o próprio Deus para a menina, mudou e tom e falou como pai zangado. Proibiu a brincadeira para todo o sempre e, pior, assustou a menina com ameaças de terríveis castigos, numa ocasião que a criança Cecília, como qualquer criança, mal podia compreender: a vida eterna! E a Cecília mulher, que o acaso trouxera àquela igreja, repetia: eterna? Nem os adultos, nem os filósofos desvendam os mistérios do Tempo e ameaça-se uma criança com a danação eterna!

Ah, Cecília foi tomada de uma vontade incontrolável de ouvir confissões e, deixou-se levar por fantasias fantásticas, através do corredor que os bancos, agora já quase vazios, deixavam no centro da nave. Não fosse o som dos saltos dos sapatos, dir-se-ia que ela flutuava envolta em sonhos e num raio de luz oblíquo e dourado, coado através da imensa abóbada...

Cecília deixou a "casa de Deus" cheia de planos diabólicos...

 

continua | anterior        

|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|

110