Heróis

10/09/97

O rapaz chega ao caixa do supermercado com dois carrinhos superlotados. Bem, antes que prossiga, preciso dizer que, só por isso, já o considero um herói. Cada um de nós tem suas neuroses mais abismais, mais inexplicáveis e inexpugnáveis. A minha, ou melhor, uma das minhas, cruciais, teológicas, é o supermercado. Se dissesse que já passei fome, só por causa dessa preguiça infinita, o leitor duvidaria de mim. Então, não digo. Resumindo: eu, num supermercado, não sou eu, é uma espécie de robô, em estado de choque. Pois bem, o rapaz chega ao caixa com dois carrinhos e, de novo, me interrompo, como se não conseguisse passar daqui, do mesmo jeito que, muitas vezes, não consegui ultrapassar essa etapa da vida: desisti. Abandonei simplesmente os carrinhos, e saí, leve. Pois nosso herói tinha, de quebra, o filho: - Pai, por que isso? Pai, como é aquilo? Pai, vai demorar? Pai, você comprou sorvete? Pai... Um herói, já disse, que mereceria mais medalhas no peito que um general da primeira guerra. Mereceria uma estátua, na frente do supermercado.

Depois de todo o inferno de passar as compras e fazer o cheque, o herói vê o aviso de uma promoção - típico de supermercado! Sempre há promoções e sempre têm avisos dessas promoções! Pergunta à moça do caixa: - o que é isso? Pois bem: os senhores marqueteiros tinham inventado o seguinte. Cada tantos reais de compras, dava direito a abrir um envelope, dentro do qual havia uma cartela com milhares de minúsculos ícones de diferentes produtos. Algumas cartelas eram premiadas e avisavam: você fez uma trinca. E aí, o desgraçado teria que achar os três ícones iguais para ganhar, digamos, uma caixa de sabão em pó ou de palitos de fósforos. Acontece que aqueles dois carrinhos cheios, davam direito a uma pilha de envelopes tão grande, que o herói poderia passar ali a metade da vida que lhe restava perdido entre ícones de detergentes e dentifrícios. Disse à moça do caixa: - toma, fica para você. E se tiver algum premiado, pode ficar para você. Enquanto continuava seu suplício - pegar tudo que antes estava num carrinho, colocar de novo em outro, para levar até um terceiro, maior e dito automóvel, a moça do caixa abria e conferia os ícones de novos deuses.

Lá pelas tantas, a funcionária entrou em estado de visível excitação: - você ganhou, você ganhou! - repetia isso e não conseguia dizer mais nada. O herói anônimo parou sua estratégia de deslocamento dos produtos adquiridos e foi ver o que se passava com moça do caixa, talvez precisasse de um copo d'água com açúcar... Refeita de tanta emoção, ela falou: você ganhou o prêmio máximo, olha, está aqui, na última cartela, do último envelope. E mostrava a tal cartela com tanto ímpeto que era impossível ver qualquer coisa, muito menos que estava desenhado num canto, um ícone especial, de um carrinho de supermercado. Aplacada a euforia de uma, pelo prêmio do outro o herói começou a entender: - Quando sai esse carrinho, vale um carrinho de compras! Você não precisa pagar um carrinho! A explicação ainda deixava muito a desejar. Ela continuava nas tentativas de explicação e depois, feitas as contas, o herói só precisaria pagar 25% do valor do cheque, que já repousava nos subterrâneos das gavetas do caixa. O desenho do carrinho no canto da cartela pagaria o resto. O cheque foi resgatado das profundezas e rasgado. Foi feito outro. E a moça do caixa exultava com os produtos que havia ganho nas outras cartelas...

Aí o herói ponderou com os próprios botões: essa grana me caiu do céu , única e exclusivamente, por causa da paciência e honestidade dessa mulher. Ela poderia, perfeitamente, ter ficado quieta e com a cartela do carrinho que, se não pudesse usar por ser funcionária, poderia dar para a mãe, para uma amiga ou para o namorado. Pegou um quinto do valor do prêmio e deu, em dinheiro, para a moça do caixa e quase ganhou um beijo na boca, como prova de deslumbramento diante de um ato, que a mim, me parece, normal.

À noite, a babá chegou com o filho do herói, que tinha ido buscar na escola. Estava tão transtornada quanto a moça do caixa, mas ela, por raiva e sede de vingança talvez: o motorista do taxi pegou a nota de sua mão, igualzinha àquela dada à moça do caixa, e arrancou com tudo, só para ficar com o troco...

 

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