ilustração de uma menina de 12 anos

A hierarquia dos sentidos

Por algum inexplicável motivo tem-me intrigado a hierarquia dos sentidos. Nem sei se já falei disso aqui, explicitamente, é óbvio, pois de forma oblíqua, no meio de outras falas, é claro que sim. Lembro ter mencionado Crick, que dividiu o Nobel com Watson por desvendar a famosa estrutura em dupla hélice do deeneá e, em outra quadra, definiu o homem como um animal essencialmente visual.

A visão tem sido a resposta mais corriqueira numa "pesquisa" informal que tenho feito com amigos. A resposta, quase sempre é a mesma: preferiria ser surdo do que cego. Essa preferência parece uma unanimidade, o que lembra a opinião implacável de Nelson Rodrigues: toda unanimidade é burra.

De fato, quem já brincou de ser cego por alguns segundos e tentou fazer as coisas mais banais apenas com os outros quatro sentidos, sentiu na pele o quanto somos dependentes da visão. O ato mais trivial se transforma num problema cheio de suspense. Nunca duvidei da importância que tem para o bicho homem a multidão de informações transportada pela luz, na maior velocidade que cada meio transparente pode permitir... Eu mesmo, durante muito tempo, fiz parte dessa unanimidade e repeti cheio de convicção a definição de Crick.

Agora, intriga-me particularmente o papel, a importância e as sutilezas da audição. Explico-me. A evolução, esse mecanismo fantástico que soube aperfeiçoar cada ser vivo a ponto de nos embasbacar com o desvendá-lo; que soube adaptá-lo às peculiares circunstâncias e variações do ambiente, alterando o pescoço de uma girafa ou o nariz de um elefante da forma que o fez, esse mecanismo, a evolução permitiu que pudéssemos optar por interromper o fluxo de informação visual a nosso bel prazer e, no entanto, faltam pálpebras efetivas aos ouvidos... Se um barulho me incomoda não posso deixar de ouvi-lo, fechar as orelhas como se fecha os olhos.

Mas há mais coisa aí. A mim impressiona mais a música do que qualquer obra visual. Sempre olhei para os grandes músicos como semi-deuses, capazes de criar um universo inédito. Apesar da maravilha que é a sexta sinfonia de Beetoven e outras tentativas de Debussy e outros, de um modo geral a música não tenta reproduzir - e nem aquela reproduzem - os sons e ruídos da natureza. Já a pintura, desde as magníficas figuras das cavernas francesas, tinham como meta imitar o que nossos olhos podem nos mostrar com o simples olhar... ou não? Talvez não. Claro que depois da fotografia vieram os impressionistas, os pontilhistas, os fauvistas, os tachista e sei lá mais que "istas". Seguiram-se teóricos para todos os gostos e pinturas que procuravam representar idéias, e não, o que se vê, etc. De qualquer forma, diante da capacidade de criar uma melodia, fico pasmo, talvez por estar infinitamente distante dela...

Apesar de toda minha incompetência musical, não deixo de cogitar sobre alguns aspectos auditivos banais. Quem sabe, porque não existia ainda televisão para a criança que fui e o rádio era um fenômeno em plena ebulição? No rádio do meio do século importava a voz. Claro, e isso parecia óbvio! Para se falar no rádio era preciso... ter uma voz agradável. Hoje, fico perplexo diante da profusão de vozes irritantes que enchem as emissoras. A próxima etapa será contratar locutores gagos, fanhosos ou ambos de uma vez. É a negação da Evolução, como Darwin a delineou. Não são os mais aptos, nas aptidões óbvias, que se dão melhor - são os mais espertos. Isso me parece verdadeiro para quase tudo nos processos de seleção social do ser humano...

Que animal se constrói assim, privilegiando essa esperteza míope e safada? A esperteza do trapaceiro, que só percebe o pequeno lucro no curtíssimo prazo. O espaço finda antes mesmo que se possa entrar no assunto. Mais do que as vozes, têm me impressionado as entonações, que desmente amiúde o que dizem as palavras... Fica para outra vez.

 


Composto no CareWare Arachnophilia 1.5.

Publicada em 6 de outubro de 1998

 

 

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