(de esporadicidade imprevisível)

Homo fidelis

13/12/18

De início, pareceu-me incontestável a importância crucial da palavra para diferençar o ser humano. O discurso assomava como o elemento mais relevante na distinção do Homo sapiens e sugeri chamá-lo Homo verbalis. Todavia, cada vez mais sua capacidade de acreditar com uma certeza cega nas fantasias criadas por seu cérebro (induzidas, ou não, por imaginações alheias) leva-me a achar mais apropriado chamá-lo Homo fidelis.

Cresce a cada dia meu assombro em face da fidelidade à crença, apesar de se multiplicarem exponencialmente evidências demolidoras da possibilidade de existir qualquer fenômeno extraordinário ou de natureza mística e restar um irretorquível comportamento animal, imposto ao corpo por milênios de condicionamento e altas doses de hormônios. Ainda assim os "fiéis" optam por proclamar sua fé incondicional na própria crença a ponderar com isenção fatos a aflorar no, antes, límpido lago da credulidade.

Afinal, é pré-requisito da Fé: acreditar independente de prova, de lógica, de verossimilhança e de demonstração. Por isto se fala em crença e, não, em fatos ou certezas científicas. As mais de duzentas acusações contra o curandeiro que se diz "de Deus" em nada altera a fé de seus "seguidores". Eles continuam a acreditar em suas crenças e, para defendê-las, agridem repórteres e procuram evitar qualquer documentação.

Minha perplexidade desemboca na piada tantas vezes repetida por meu pai quando o assunto era o credo de cada um. Dizia ele: "é uma questão de fé demais ou fé de menos". Quanto ao que cada pessoa acredita é inútil discutir ou argumentar, pois cada um é livre para acreditar no que quiser (ou no que lhe tenha sido incutido).

Não julgo os contendedores. Assombra-me o quanto acreditamos em ideias, nas ficções criadas pela palavra, na realidade virtual da imaginação.

Fri, 14 Dec 2018 07:02:16 -0200

Oi, Clôde

Compartilho a sua estranheza diante da crença cega a evidências.
Quando fui trabalhar em 2005 na Universidade Católica de Salvador (que eles chamam de DO Salvador), achei necessário deixar claro desde o princípio o meu ateísmo (ou agnosticismo, como meu pai preferia). Embora o padre (depois bispo) diretor do programa de mestrado garantisse que isso não seria empecilho, lembro de dois lances interessantes: (1) no fim de uma aula sobre evolução humana, um dos alunos (aliás, um rapaz bastante inteligente) veio comentar comigo: ‘Ana, sua aula é um espetáculo - mas eu não acredito em nada disso...’; (2) em outra ocasião, uma colega (Lucia, também uma pessoa muito legal, de quem fiquei bem amiga), um dia me perguntou por que eu não tenho fé; respondi que o sobrenatural não entra na minha cabeça (o que constatei definitivamente antes de sair do colégio de freiras, embora tenha mantido o “bom comportamento’ até o fim do colegial pra evitar aborrecimentos...).
A réplica de Lucia: Mas você é a ateia mais cristã que eu conheço!...

Penso mesmo isso: a fé é que o que poderíamos chamar de propensão, ou dom, como a sensibilidade artística, a afinação para cantar, o talento pra desenhar etc etc etc... Algumas pessoas têm, ou precisam desenvolver para se entender com a vida; para outras, simplesmente não entra na cabeça...
Aliás, penso mais ou menos a mesma coisa sobre capacidade de se sentir feliz. Algumas das pessoas mais felizes que conheci eram pessoas muito simples, com vidas muito difíceis; em compensação, outras muito talentosas e bem sucedidas são eternamente inquietas, angustiadas, insatisfeitas...

Especulações...
Bjs
Ana

Oi, Ana.

Que delícia seu relato! Melhor que a crônica original.

De fato a fé é acreditar mesmo em oposição a todas as evidências.

Eu não soube manter 'o "bom comportamento" até o fim do colegial': fui expulso duas vezes e em ambas ocasiões minha expulsão foi revertida, primeiro diante da argumentação de minha mãe quanto a ser meu pai agnóstico (também ele não gostava de ser tido como ateu!) e, da segunda vez, por estar minha mãe grávida de minha irmã caçula. O "eterno" reitor do Colégio de São Bento, Dom Lourenço de Almeida Prado (reitor do Colégio de meus 11 anos até 2002, quando completei 58!) não quis perturbá-la e me aconselhou a pedir para sair, o que nunca fiz.

Talvez você tenha razão. Minhas irmãs são ambas religiosas, como minha mãe e a mãe dela. Meu pai, eu e meu irmão, não. Poderia até se pensar em um gene da religiosidade...

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