Insignificante


8/01/98



De tempos em tempos alguém fala da insignificância do ser humano. Bonito! Um ser humano fala de sua insignificância e da de todos de sua espécie! Enche a boca, mete lá um grifo qualquer e proclama nossa insignificância. Se possível, menciona o tempo, o espaço, o desconhecido, o que chamamos alma, o enigma da vida e da morte, e todas as coisas a que chamamos vida eterna, nirvana ou Deus! Aí, resta proclamar, como Pedro: laços fora, vaidade! Insignificância e morte que dessa, é impossível escapar...

Vira e mexe e trombo com falas sobre nossa insignificância, a qualquer hora, nas esquinas mais triviais de nossos textos. Falar de um assunto e repeti-lo até a exaustão, é óbvio, o torna banal. Neste caso é até engraçado: o cara fala de sua insignificância, de sua efemeridade, da consciência de ser um único indivíduo entre bilhões de seres vivos, bilhões de outros seres humanos, de habitar um minúsculo planetinha, grão de poeira num universo cujos limites não se podem sequer sonhar, etc., etc. Fala tudo isso e, aí, se sente mais importante porque falou essas coisas. Faz pose de um ser que paira acima dos outros, depois e porque se disse um Zé Ninguém...

As palavras se gastam como sola de sapato. Ou melhor, pior. Pior do que sola de sapato. Nos sapatos sempre é possível pôr uma meia sola, nas palavras, não. Perdem seu significado pela força da repetição. Ao contrário das observações de Lamarck, quanto ao uso das partes - que o corpo torna mais desenvolvidas e vigorosas pelo uso repetitivo, como músculos, por exemplo - as palavras, ao contrário, definham pelo excesso de uso e abuso. São como chiclete: depois de se mastigar um pouco, é preciso cuspir. Um perde o sabor, as outras deixam de dizer. Muitos movimentos que surgiram cheios de vigor e novas propostas, até o ponto de incomodar os conchavos vigentes, aquilo se costuma chamar de establishment, foram enfraquecidos pela adoção e repetição de seus lemas e bandeiras, pela rápida banalização de suas idéias e propostas. É uma velha tática, nada inocente, capaz de transformar um novo alimento no feijão com arroz de sempre.

A nossa tendência pra virar papagaio é poderosa. Se descuidamos, ou melhor, se deixamos de estar atentos, em pouco tempo já estamos "sendo falados", repetindo como se fossem nossas, trilhas e falas de um script que mal percebemos existir. E as palavras ligadas aos temas que nos interessam mais - os grandes temas da humanidade, poderíamos dizer -, essas são as que se desgastam mais. Ontem falei de uma carta de amor. Amor - talvez a mais malbaratada de todas as palavras. Diz-se, até, fazer amor! Que palavras de amor diria Jesus a Maria de Magdala, a prostituta que, segundo o Evangelho de Saramago, conviveu intimamente com o homem-deus? Amai-vos uns aos outros como eu vos amei? Fragmentação. Assim como se faz com a vida, pega-se o amor e faz-se um picadinho: amor isso, amor aquilo e inventam-se modos de medir e dosar... o amor. Posso falar de uma forma radical? Posso ver o amor como uma coisa absoluta, indivisível? Ou se ama ou não se ama. Ponto. Sem qualificativos, sem condições, sem objeto. Intransitivo, como o disse muito bem o Mário. No entanto, olha-se à roda e o que se vê é o chamado amor como estopim de tantas brigas, de tanta frustração, de tanto desentendimento. Como posso amar e estar cheio de ódio? E muitos dirão: o amor e o ódio são faces da mesma moeda... Como posso amar e querer possuir? E muitos dirão: é claro que se amo quero possuir aquilo que amo...

De tempos em tempos alguém fala da insignificância do ser humano... e, no entanto, esse ser humano e insignificante como indivíduo, efêmero como indivíduo, parece ser o único, entre milhões de espécies, capaz de cogitar sobre o significado do amor... de Deus e do Diabo. Esse ser míope, que mal levanta os olhos para as estrelas nos confins do firmamento, parece ser o único que traz em suas entranhas essa inquietação, uma espécie de saudade de um estado de amor absoluto, de uma comunhão com Deus e com o Diabo. Esse ser humano e insignificante como indivíduo, parece ser o único que tem a nostalgia de uma harmonia perfeita que intui e vê, seja na terra, seja no céu. Amém.



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