cronista em desenho de Vicente Kubrusly (29-05-78) Crônica do dia

Janela aberta

12/05/15

Abro a janela e o sol, velado por ralas nuvens, invade fundo o aposento, pois a posição da Terra na órbita, nesta época, expõe a metade ao sul do equador quase de raspão a sua luz. A luz oblíqua, por sua vez, destaca texturas, relevos imperceptíveis das superfícies e cria, assim, um novo universo tátil, como se os olhos pudessem, momentaneamente, apalpar com o mais fino tato.

Que os sons abomináveis da construção ao lado invadam e perturbem a audição, pois abrir janelas deve ser, em mim, gesto atávico. Marcou-me ver minha mãe sempre a abrir todas, bem abertas, com serena determinação. Também já relatei aqui, cena de um filme, marcante para mim, onde Roberto Benigni desenha com carvão uma janela na parede nua da prisão. O filme inspirou, também, outros textos.

Os pedreiros e demolidores devem ter chegado a um ponto mais fundo no hotel - os sons se amainam enquanto o sol galga céu acima entre véus que o anuviam. Ao redor, milhares de janelas a me olharem com o enigma de vidas abrigadas, como entradas de tocas a esconder a humanidade. Precisamos da amplidão para o olhar. Com os olhos apalpamos o longe e o mais longe ainda e, em noites estreladas, o inatingível e impossível de entender.

A britadeira deve ter voltado para a fachada do hotel e o som parece vir de muito perto. Outro operário martela e a cacofonia se orquestra com instrumentos de construção e demolição. As janelas calam. Ao contrário dos prisioneiros, as pessoas se ocupam dos afazeres e as entradas de suas tocas permanecem vazias. O olhar percorre milhares de janelas - claro, existe aqui uma hipérbole numérica, não contei as janelas - em busca de alguém a pendurar uma roupa, a limpar um parapeito ou lavar os vidros e nada. Uma nuvem mais espessa encobre o sol. Dura pouco, ele me invade outra vez pela janela aberta.

Fri, 15 May 2015 13:50:01 -0300

Nossa, que lindo!!!!

um novo universo tátil, como se os olhos pudessem, momentaneamente, apalpar com o mais fino tato.

sol galga céu acima entre véus que o anuviam.

você apalpa com os olhos e escreve com eles também, tão visuais são suas descrições

      sem assinatura

Crick dizia: "... nossa imagem interior do mundo exterior é, ao mesmo tempo, vívida e acurada, o que nem é surpreendente, face ao fato de que os seres humanos são animais altamente visuais."

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